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Ser trans no cárcere: um recomeço

Decisão do STF assegura o direito de escolha de pessoas trans e travestis para ampliar sua proteção no ambiente prisional
POR Alex Mourão

Decisão do STF assegura o direito de escolha de pessoas trans e travestis para ampliar sua proteção no ambiente prisional

Alex Mourão
alex.mourao5@gmail.com

Quando Hector Babenco lançou seu filme “Carandiru” em 2003, baseado na obra “Estação Carandiru” do médico e escritor Dráuzio Varella, uma miríade de personagens saltou das telas de cinema. Os embrutecidos do cárcere ganharam vidas, formas, falas e rostos. O enredo do filme conta as histórias vividas por um médico que desenvolve trabalho voluntário na Casa de Detenção de São Paulo. Além das vivências do personagem principal, outros personagens vão tomando corpo e sendo apresentados ao espectador. Um a um, vão se descortinando, mostrando a fragilidade humana, as histórias de vida e a brutalidade da prisão.

Milton Gonçalves interpretou seu Chico, introspectivo e respeitado. Ailton Graça viveu o personagem Majestade, um mulherengo romantizado. Peixeira, vivido por Milhem Cortaz, é um assassino assombrado por tormentas.

Dois personagens chamam a atenção especial, tanto naquela época como ainda hoje, o casal formado por “Sem Chance”, que ganhou vida na interpretação de Gero Camilo, e “Lady Di”, interpretada por Rodrigo Santoro. E lá estava, escancarado na tela e trancado na cadeia: o amor, o casamento e o beijo. O casamento e o beijo.

Lembrei esse casal na semana passada, quando o Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 527/DF, ajuizada pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), decidiu que travestis e transexuais com identificação de gênero feminino podem cumprir pena em presídio feminino, se assim optarem. Podem também escolher cumprir a pena em presídio masculino. Nesse caso, as detentas trans podem ficar separadas do demais presos para sua segurança.

Na verdade, o Ministro ajustou o que já estava em cautelar na mesma ADPF, quando havia decidido pela transferência de presas transexuais para unidades prisionais femininas. Persistia um certo vazio normativo quanto a travestis. Agora, em 19 de março, ajustando os termos do que havia deferido, o ministrou acrescentou a possibilidade de opção e incluiu as travestis.

O ministro fundamentou a sua decisão, ainda, em dois importantes documentos, a Nota Técnica 7/2020 do Ministério da Justiça e Segurança Pública e oo Relatório “LGBT nas prisões do Brasil: diagnósticos dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento”. Dessa forma, com fundamentação no ordenamento jurídico, na dignidade da pessoa humana e em estudos sobre o tema, a decisão é um avanço, pois oferece ao apenado o direito de escolha. Lembrando que não se trata aqui de um privilégio, mas sim de um direito. O direito, entre outros, à dignidade, o direito de ser quem é, sem riscos à integridade física.

As pessoas trans sofrem diversos tipos de violência nas ruas. O cárcere, como uma espécie de repetição de nossa sociedade extra muros, reproduz violências e preconceitos.

A medida tem como objetivo reduzir as agressões sofridas pela população trans nas prisões e, ao mesmo tempo, respeita a sua dignidade, pois confere o direito de escolher onde a pena será cumprida, de acordo com o que for melhor. Além de ser uma importante decisão do Poder Judiciário brasileiro, confirmando a jurisprudência do próprio STF, está também em plena sintonia com as normas internacionais de proteção à população LGBTQIA+, como os Princípios de Yogyakarta. O ministro salientou que o direito de escolha, no caso, é reflexo do direito que as pessoas têm de vivenciar a sua identidade de gênero, autonomia e saúde.

Não sei se o casal “Sem chance” e “Lady Di” teriam se encontrado nos dias de hoje, não sei se ela teria preferido cumprir pena em estabelecimento feminino, mas penso que com essa decisão as “Lady Di” dos dias de hoje estão menos vulneráveis e podem ser mais respeitadas.

Alex Mourão é professor universitário. Está no Instagram.

Alex Mourão

Professor universitário, graduado em Filosofia e Direito, mestre e doutorando em políticas públicas.