Bemdito

Da literatura como fósforo aceso na escuridão

Os desajustados de Salinger revelam o desacerto e a transgressão como marcas interessantes do humano
POR Camille C. Branco

Os desajustados de Salinger revelam o desacerto e a transgressão como marcas interessantes do humano

Camille Castelo Branco
camillecastelobranco@gmail.com

Foram muito raras as vezes em que vi personagens virtuosos, ilibados e puros renderem boa literatura. James Wood defende (e eu concordo) que a literatura é a coisa mais próxima da vida. E a vida é feita de contradição, desacerto, sarjeta, transgressão. Muita beleza nasce destes lugares. Coisa que Salinger parecia compreender. Trata-se de um autor que ficou consagrado por seu O apanhador no campo de centeio, narrado por um dos personagens menos simpáticos da ficção. Holden Caulfield é um adolescente irritado, misantropo e entediado, desagradável a ponto de alguns leitores considerarem a leitura do romance impossível de se atravessar. E, como quase todo adolescente e adulto com este tipo de comportamento, Holden está sofrendo.

Faço parte do componente de leitores que não detesta Caulfield. Gostaria muito de acompanhá-lo em uma de suas caminhadas noturnas, ou sentar em frente a ele durante um café às seis da tarde, a hora da penumbra, o período mais melancólico do dia, para conversar sobre os momentos em que também vi meu coração ser desfeito, em que fui apanhada pelo cinismo, em que observei com desdém superior o otimismo alheio. Mais do que isto, gostaria de conversar com o próprio Salinger, para quem Sylvia Plath, a poeta que mais amei, escreveu cartas sem nunca obter resposta e em quem se inspirou para produzir seu único romance, A redoma de vidro. Salinger não gostava de falar com as pessoas. Fugiu dos jornalistas por toda a vida.

Recentemente a editora Todavia decidiu publicar sua obra completa, até então acessada com muita dificuldade pelo leitor brasileiro. Foi quando tive a oportunidade de entrar em contato com o projeto menos conhecido e mais ambicioso do autor: a narrativa da história da família Glass. Trata-se de um grupo em tudo peculiar, formado por sete crianças prodígio, outrora estrelas de um programa de rádio nacional, e seus pais, que juntaram uma fortuna razoável a partir da genialidade dos filhos. Dois dos filhos Glass foram precocemente perdidos para a guerra e para o suicídio. Quando Salinger começou a planejar os contos, novelas e romances que retratariam a saga da família, se trancou em um bunker nos fundos de sua casa, obcecado, tomando notas e criando árvores genealógicas.

Parte deste investimento pode ser visualizada em Franny & Zooey, livro dividido entre um conto e uma novela, que tem como protagonistas dois dos irmãos Glass cujos nomes emprestam título à obra. Na primeira parte, vemos uma Franny abatida por uma espécie de torpor místico, repetindo sem parar uma oração para se consolar, enquanto não come, desmaia e sua frio com grande frequência e está severamente deprimida. Tomei de empréstimo em mais de uma ocasião, para descrever a mim mesma, as palavras que Salinger elegeu para referir-se a Franny: “Havia semicírculos sob seus olhos e outros indícios mais sutis que marcam uma moça agudamente perturbada, mas mesmo assim ninguém poderia deixar de ver que a beleza dela era de primeira categoria. Sua pele era linda, e seus traços eram delicados e muito pessoais”. Se me fosse solicitado definir Franny, eu diria que ela é uma coisa bela e delicada, que foi trincada por dentro.

Zooey, seu irmão, parece ter mais couraça para enfrentar seu caos interior. Brilhante como a irmã, mas muito mais exigente a respeito do que espera do mundo, Zooey conseguiu desenvolver uma ironia meticulosa e calculada, que o ajuda a se defender e manter distância da hipocrisia e da mediocridade que ele identifica com tanta rapidez. Em uma das passagens mais sagazes do livro, Zooey diz à irmã que a maioria dos cristãos procura transformar Jesus em São Francisco de Assis para que ele se torne mais amável, e não um messias revolucionário, interessado em modificar a ordem das coisas. Trata-se de um personagem que, por trás de uma escrupulosa aparência de aspereza e impaciência, acredita que a verdadeira beleza deve ser oferecida ao mundo – que Emily Dickinson deve escrever lindos poemas e que Franny deve ser atriz. É difícil não reconhecer uma sensibilidade profunda nesta convicção.

O impacto da literatura de Salinger possui grandes proporções. Ele nunca concedeu os direitos de adaptação de seus livros para o cinema. No entanto, sua obra aparece citada em séries e filmes como Gilmore Girls, BoJack Horseman, Matilda, As vantagens de ser invisível. Wes Anderson se inspirou livremente na família Glass na elaboração do longa Os excêntricos Tenenbaums, que captou a atmosfera dos livros com competência. Minha menção favorita talvez esteja em um filme chamado Carrie Pilby, cuja protagonista é um gênio precoce que, em uma das cenas, exclama para seu terapeuta: “O que há de tão grandioso em ser feliz, afinal? Há pessoas infelizes brilhantes. Kierkegaard, Beethoven, Van Gogh… Morrissey!”. Seu livro favorito é Franny & Zooey.

Alçado ao posto de clássico, Salinger recebeu muita atenção da teoria literária. Mas é a emoção que suas palavras me provocam o que me aproxima dos livros dele. O autor se ocupou em retratar o conflito de crianças que, de encontro com a idade adulta, percebem que qualidades como sensibilidade e inteligência excepcional não oferecem garantias de paz e felicidade. Lacan chamaria esta desilusão de rochedo da castração, um reconhecimento de que não podemos tudo e de que o mundo não costuma se moldar às nossas fantasias. Assustados ante a possibilidade de corromperem-se em conformismo e mediocridade pelo caminho, os personagens de Salinger insistem, com maior ou menor êxito, em nadar contra a corrente, sem que o autor nos ofereça conclusão sobre se o esforço compensa ou não – a melhor literatura costuma fazer boas perguntas, não oferecer respostas.

No preâmbulo de A literatura e o mal Bataille escreve: “O Mal – uma forma aguda do Mal – de que ela [a literatura] é a expressão tem para nós, acredito, o valor soberano”. Aprendo muito com a angústia de Holden, Franny e Zooey. Enxergo os personagens tentando fazer algo da própria inadequação, da própria falta de pertencimento, do fato de sentirem demais, sofrerem demais e verem tragédias onde todos enxergam normalidade. Por alguns instantes, Salinger faz com que eu me sinta menos sozinha. Lendo-o, me recordo aos poucos das palavras de Faulkner, na afirmação de que a literatura faz o mesmo que um fósforo aceso no campo, no meio da noite. Segundo Faulkner, um fósforo não ilumina quase nada. Mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor.

Camille C. Branco é antropóloga, pesquisadora e pode ser encontrada no Instagram.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.