“Não tenho lugar de fala”: uma cômoda distorção
O que o conceito “lugar de fala” significa e por que brancos devem perceber sua branquitude para começar a entender o local que ocupam socialmente e, assim, criticá-lo
Izabel Accioly
mariaizabelaccioly@gmail.com
“Eu não tenho lugar de fala para tratar de racismo”. Nos últimos meses, ouvi essa frase um sem-número de vezes. Em geral, ela é dita por pessoas brancas que me fazem convites para dar aulas, palestras, treinamentos em empresas. Na maioria dos casos, sou a única negra naquele lugar. Fico muito feliz com as propostas e em ocupar esses espaços, mas me preocupa a distorção do conceito sendo feita com bastante recorrência.
Desde a popularização do conceito de lugar de fala, ocorrida principalmente depois da publicação do livro de Djamila Ribeiro, vejo acontecer diversas distorções. Há uma ideia de que apenas indivíduos que fazem parte de minorias sociais teriam lugar de fala. Quando uma pessoa branca, cis, hétero diz que não tem lugar de fala, ela está expressando uma pretensa ideia de universalidade – “diferente é o outro, não eu”. Partem da ideia de que cisgeneridade, branquitude e heterossexualidade não são marcadores sociais, mas identidades neutras. Não mencionar essas identidades faz com que esses grupos não tenham seu poder apontado, questionado, problematizado.
Para além da não percepção enquanto ser universal, existe também a falsa ideia de que o conceito de lugar de fala serviria como censura, faria pessoas se calarem. Na verdade, o lugar de fala está mais ligado à perspectiva de onde se olha e narra, do que propriamente sobre autorização para falar. Não somos todos iguais, portanto, é importante situar as narrativas – social, econômica, política e culturalmente.
Ontem, durante uma palestra, um aluno me questionou se uma professora branca poderia mediar um grupo de estudos sobre raça. Esta é uma das perguntas que mais recebo. Respondi que sim, brancos podem falar sobre raça. Entretanto, precisam primeiro refletir sobre o lugar de onde partem. É necessário que brancos percebam a sua branquitude para que entendam qual o lugar que ocupam socialmente e, a partir disso, possam criticá-lo.
Izabel Accioly é antropóloga, professora e pesquisadora das temáticas de relações raciais e branquitude. Está no Twitter e no Instagram.