Gestão da pandemia: o campo de batalha do presidente
Como a politização da pandemia por Bolsonaro, em torno da disputa eleitoral de 2022, influencia as decisões políticas e os rumos da pandemia no Brasil
Monalisa Soares
monalisaslopes@gmail.com
A pandemia da Covid-19 impôs vários desafios aos gestores públicos de todo o mundo. A crise sanitária trouxe efeitos desastrosos para o sistema de saúde e para a economia, que demandaram decisões rápidas e assertivas para conter os danos. Concomitantemente, a capacidade de enfrentamento à pandemia tem gerado repercussão na popularidade dos governantes.
Em diversos países, governo e oposição declararam trégua na disputa política visando uma forma de cooperação para lidar com o problema. O cálculo parece óbvio: não interessava, tanto para quem está no poder, quanto para quem tem o interesse de vir a ocupá-lo, que os países se tornassem terras arrasadas.
No Brasil, passamos longe disso. E não foi a oposição quem queimou as pontes, foi o governo federal o responsável por fazer da gestão da pandemia um campo de batalha ideológico. Bolsonaro decidiu conduzir a crise sanitária sob o signo da campanha permanente que marcou as ações desde o início de seu mandato. Ou seja, mesmo na pandemia, o presidente deu consecução à estratégia conflitiva com os demais atores do campo político, não esboçando nenhum interesse de produzir alguma mediação duradoura.
O filósofo Marcos Nobre afirmou que, ao perceber que poderia ser atingido pelas consequências da pandemia, o presidente refugiou-se entre os apoiadores mais fiéis, buscando mantê-los mobilizados para “evitar a ameaça de um impeachment […] e para conquistar uma vaga no segundo turno na eleição de 2022”. No melhor estilo “nós x eles”, o presidente passou a traçar novas linhas divisórias na qual qualquer ator político (prefeito/a; governador/a, ministro/a, etc.) que questionasse sua perspectiva para o controle da doença se tornava imediatamente opositor.
Destaco duas ações que se estendem no período de pandemia e que evidenciam essa estratégia de combate mobilizada pelo governo federal:
- O Presidente da República e seus aliados sempre criticaram as medidas de isolamento decretadas por governadores/as e prefeitos/as, buscando atribuir a estes/as a responsabilidade pela “destruição” da economia, a falência de empresas e desemprego dela decorrente;
- Por diversas ocasiões, Bolsonaro insinuou que gestores/as estaduais e municipais faziam mau uso de recursos públicos no combate à pandemia. Basta lembrar das sugestões para que apoiadores fossem a hospitais de campanha filmar “se os leitos estão ocupados ou não, se os gastos são compatíveis ou não”, como afirmou o presidente, além da postagem nas redes sociais neste ano sobre os repasses de verbas da saúde para estados.
Como resultado dessas ações, de acordo com levantamento realizado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública da USP, o presidente contribuiu para “atrapalhar aqueles que estão tentando reduzir ou minimizar os malefícios que essa pandemia está causando à coletividade e aos indivíduos particularmente”.
Do lado da oposição, a tarefa de gerir a pandemia tornou-se, portanto, ainda mais complexa. Não bastassem os desafios impostos pelo enfrentamento da doença, exigindo readequação dos sistemas de saúde com ampliação de leitos e equipes, gestores estaduais e municipais enfrentaram questionamentos e investigações sobre os gastos com hospitais de campanha. Some-se a isso a pressão de setores econômicos a favor da flexibilização das medidas restritivas de circulação de pessoas, entre outros. Gerir a pandemia exigiu desses/as gestores/as tomadas de decisões que causaram desgastes. Não está claro ainda o tamanho do impacto e com que saldo político chegarão a 2022.
O certo é que o agravamento da pandemia no Brasil, somado a outros desdobramentos de ordem política, tem gerado prejuízos à avaliação do governo Bolsonaro. A cada nova pesquisa de opinião pública, os dados confirmam o aumento de rejeição e a discordância da forma de condução da pandemia. A aprovação do governo fica cada vez mais restrita aos apoiadores mais fidelizados, em torno de 30% do eleitorado, indicam as pesquisas.
Há chances de que o governo enfrente ainda mais desafios, já que o Senado Federal deverá conduzir uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar a condução da pandemia pelo governo federal. Cabe destacar que a iniciativa de abertura veio por interpelação do Supremo Tribunal Federal (STF), a pedido de senadores.
Para além das discussões sobre ativismo judicial versus cumprimento da Constituição, o que me chamou atenção no caso foi a decisão do presidente do Senado de protelar o exame do requerimento apresentado ainda em fevereiro, em nome de “um juízo de oportunidade e conveniência”. Pacheco afirmou que não seria oportuno abrir a CPI porque esta “poderá ser um papel de antecipação de discussão político-eleitoral de 2022, de palanque político, que é absolutamente inapropriado para este momento da nação”. Sendo a CPI um instrumento investigativo da atuação do governo federal, quem poderia fazer da CPI um palanque? A resposta óbvia: a oposição…
No entanto, eu diria que a fala do presidente do Senado eclipsa uma informação contundente sobre a gestão da pandemia até aqui: foi a oposição que atuou sistematicamente para que a gestão da pandemia ocorresse de acordo com as orientações das autoridades sanitárias mundiais, que se empenhou para que a vacinação ocorresse no País e que, através das gestões estaduais e municipais, vem contribuindo para reduzir os danos do que temos vivido.
Revela certa ironia que seja sugerida a possibilidade de a oposição politizar a pandemia, quando em realidade usa o expediente de fiscalizar a atuação de um governo, que fez da crise sanitária seu campo de batalha por excelência, na busca por fidelização de sua base de apoio para a disputa eleitoral de 2022. Se ainda restava alguma dúvida sobre isso, a reação do presidente à decisão de abertura da CPI orientando sua base contra o STF e levantando suspeitas contra governadores/as e prefeitos/as, deve bastar para abolir.
Monalisa Soares é professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (LEPEM) com ênfase em campanhas eleitorais, gênero e análise de conjuntura. Está no Instagram.