Obrigado, Calligaris!
Ao amigo psicanalista que nunca conheci
Leonardo Araújo
araujovleonardo@gmail.com
Contardo Calligaris morreu numa terça-feira, dia de Ogum, orixá dos caminhos e da guerra. Se, por um lado, a franqueza do caráter, o gosto em oferecer contrapontos – seu pai dizia que deveria tê-lo chamado de “Contrário”, pelo hábito de começar as sentenças sempre por um “mas” –, o apreço pelo boxe e as constantes viagens indicavam uma personalidade combativa e aventureira, talvez a impressão mais forte que tenha deixado foi a generosidade diante do sofrimento humano, a simplicidade com que falava sobre conceitos complexos e a coragem de construir um caminho próprio, orientado pelos cânones, mas jamais à sombra destes.
Ele certamente foi uma das pessoas a falar mais abertamente sobre as sutilezas e peculiaridades deste estranho ofício que é ser psicanalista, influenciando gerações e gerações de terapeutas, cujos primeiros passos, em muitos casos, foram dados tendo o suporte de seu ombro amigo.
Posso dizer que me encontro entre eles. Alguns anos atrás, quando ainda estava às voltas com a difícil decisão de me tornar analista – diferente de outras profissões, isso é algo que se decide por si, dentro do próprio processo terapêutico, não dependendo de chancela institucional – me veio às mãos o livro Cartas a um jovem terapeuta. Nele, Calligaris apresenta de maneira leve e bem-humorada as primeiras questões surgidas quando o desejo de analista começa a despontar, as quais podem fazer da decisão de passar para o “outro lado do divã” algo sempre adiado.
Lembro-me de ter ficado maravilhado ao descobrir que muitas das minhas angústias eram compartilhadas por um Calligaris em início de carreira, atendendo no mesmo espaço onde morava e tentando parecer mais experiente do que de fato era, para não “decepcionar” os pacientes que chegavam. Na forma de cartas e bilhetes compartilhados com um fictício terapeuta iniciante, essas e outras cenas – como a do baile à fantasia ao qual compareceu vestido “normalmente” para só depois se dar conta, às gargalhadas, de que fora disfarçado de psicanalista – eram contadas não a partir do lugar do mestre que conhece os segredos da “misteriosa” prática, mas de quem percorreu um caminho que outros tantos estavam ansiosos em palmilhar.
Nessa “conversa” com Calligaris, descobri que para me tornar analista não precisava, antes mesmo de começar, ler a obra completa de Freud e Lacan (trabalho de uma vida, diga-se de passagem). Ou ter um consultório bem mobiliado na Aldeota, com recepcionista e máquina de café expresso. Ou frequentar os seminários e encontros mais disputados, com “figurões” trazidos de fora a peso de ouro. Mais importante do que tudo isso era possuir um carinho espontâneo pelas pessoas e o interesse em escutar suas histórias; uma curiosidade ativa pela diversidade da experiência humana, com o mínimo de preconceito ou moralismo possíveis; conhecer o sofrimento psíquico de perto e não ignorar os próprios desejos, por mais estranhos que pareçam. Humildade para reconhecer que o analista é, no melhor dos casos, apenas um remédio, que, depois de usado, é jogado fora, por haver alcançado seu efeito. E, além de tudo, viver – provar a vida em toda intensidade e variedade de experiências, alegres ou tristes.
Isso não era um chamado à falta de rigor teórico ou técnico, pois estes nunca faltaram a Calligaris. Tratava-se na verdade de uma tentativa de aproximar a psicanálise das pessoas, de usá-la a favor de uma vida bem vivida, da construção de posições subjetivas emancipatórias, por meio da desalienação em relação ao próprio desejo.
Colunista da Folha de São Paulo por mais de 20 anos, Calligaris escreveu sobre uma diversidade de temas e, em muitos momentos, discordei frontalmente de suas opiniões e posicionamentos políticos. No entanto, estes nunca foram capazes de abalar o afeto nascido daquelas primeiras palavras de encorajamento, as quais pareciam direcionadas a mim. Sem elas, é possível que eu não tivesse conseguido começar ou insistir na prática deste ofício igualmente apaixonante e desafiador.
Ao saber de sua morte, retornei ao livro que, para mim, marcou o início de tudo. E ao folheá-lo me peguei rindo das mesmas passagens, comovido pelos mesmos episódios narrados com a cumplicidade de um amigo, tão generoso quanto despretensiosamente sábio. Apesar de nunca tê-lo conhecido, por tudo isso sou verdadeiramente grato. Obrigado!
Leonardo Araújo é psicanalista e pesquisador em antropologia/sociologia. Está no Instagram.