Bemdito

Sepultando o amor

No amor e na política, você tem que sujar as mãos
POR Jamieson Simões

No amor e na política, você tem que sujar as mãos

Jamieson Simões
jamrsimoes@gmail.com

– Ô, seu Simões! Tô passando aí pra deixar o lixo que o senhor pediu. Eu, no começo, achei estranho o senhor se interessar pelo lixo, mas se o senhor deu atenção pra mim e me ajudou, então deve saber o que está fazendo, tá tudo certo…

Ele é um egresso do sistema. Eu o conheci na braba. Foi pego roubando na comunidade e tomou uma surra grande. Dei a voz por ele. Tratei das feridas. Botei pra tirar os documentos e consegui um emprego de gari pra ele. Geralmente, eu mesmo faço o trabalho sujo, mas resolvi pedir o favor para testar sua lealdade. Ele foi aprovado.

Saber qual o caminhão de lixo fazia a coleta na rua dela foi fácil, afinal passei nove meses escutando-o passar às 23:45 e às vezes me tirava o sono. Adorava saber do tempo e da rotina, observando o vento ou o som das coisas e da rua. Pedi que separasse para mim um lixo muito específico. No amor e na política, você tem que sujar as mãos (Sartre concordaria com metade dessa frase e deixaria de fora o amor). Se você quer conhecer sobre o amor, procure no lixo.

Preparei minha mesa e fui abrindo as sacolas de lixo. Me paramentei com máscara, luvas, lâminas e pinças. Comecei a autópsia. As cápsulas ímpares de café me sugerem que recebeu visita. Não tem comido banana com regularidade. Na verdade, quase não tem comido. Mas isso não é o importante. Continuo e abro as outras sacolas e lá está o amor em fragmentos:

– Uma folha de parreira com o nome dela que eu mesmo bordei;

– Uma costela de tartaruga com o poema que eu fiz pra ela naquela praia que era só nossa;

– Um par de brincos que me custou três noites de planejamento e uma semana tecendo fio por fio;

– 29 fotos da instalação que eu montei numa noite ordinária. Estavam amassadas (me causando um certo desconforto, pois esperava que estivessem rasgadas).

Enfim, ali diante de mim, os restos mortais de um amor. Morto. Inerte. Colorido, mas sem sorriso. O significante é de cada um. Não virei um livro na estante, não me transformei em roteiro de filme, nem em mancha de suor na parede do quarto. Não virei história de viagem. Não virei um suspiro e das lembranças só as ruins. Virei lixo.

Olhei com ternura pros pedaços do amor. Cavei uma cova funda aos pés do baobá do quintal. Envolvi o corpo numa túnica africana e enterrei sem dor o amor que fui. Derramei uma dose de cachaça na terra e brindei ter vivido e morrido: amor.

Jamieson Simões é um corpo-negro no mundo com toda potência que isso implica. Está no Instagram.

Jamieson Simões

Pesquisador em juventude e violência, é assessor do Comitê Cearense de Prevenção à Violência da Assembleia Legislativa e mestrando em sociologia na UFC.