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Como converter um bolsominion

O extremismo violento de direita não vai simplesmente desaparecer, não importa qual seja o resultado da eleição de 2022
POR Wanderley Neves
Foto: Marcos Corrêa/PR

O extremismo violento de direita não vai simplesmente desaparecer, não importa qual seja o resultado da eleição de 2022

Wanderley Neves
nevesn@gmail.com

Como reclamou um certo vendedor de filtro solar recentemente, o título deste texto é um “caça-clique”. Não, aqui você não vai encontrar um guia em cinco passos de como responder às barbaridades do grupo da família ou aos comentários no perfil da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) -se você não entendeu essa última, melhor permanecer na ignorância.

Mas é com títulos assim que os “ideólogos” da extrema-direita conseguem ser notados pelo algoritmo e chegar à página inicial do YouTube e, mais importante, à lista de “relacionados” abaixo de cada vídeo, que por padrão é reproduzida automaticamente. É a receita para horas e horas contínuas de olhos grudados no aplicativo (e seus anúncios).

O podcast Rabbit Hole, do New York Times, reconstitui como mudanças no YouTube para aumentar o tempo das pessoas na plataforma inflou bolhas. A equipe baixou e analisou todo o histórico de um jovem comum que gostava de punk rock no colégio, 12 mil vídeos ao longo de quato anos. A partir de um vídeo antifeminista, Caleb Cain foi de recomendação em recomendação até o voto em Donald Trump e a defesa do nacionalismo branco.

Fala-se muito do papel dos grupos de WhatsApp no programa de radicalização em massa da extrema-direita brasileira, mas é preciso também olhar para a origem do conteúdo compartilhado. Pesquisadores do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Northwestern monitoraram a atividade desses grupos durante a eleição de 2018. Nos identificados com a direita, quase metade das mensagens (46,5%) foi enviada com alguma mídia anexa, seja foto, vídeo ou áudio; e o YouTube era o principal destino (56,3%) das mensagens com links. Não à toa o artigo fala em “milhares de pequenos e contínuos comícios”.

Investigação da consultoria Quaest para o jornal O Globo estimou que esse esquema de divulgação renda até R$ 150 mil mensais para youtubers bolsonaristas, que recebem diretamente do Palácio do Planalto os assuntos do dia em troca da divulgação pela parentada do presidente da República e seus idólatras. Abriu-se então uma fonte infindável de músicos frustrados e influencers medíocres transformados em mensageiros da “verdade” sobre a política brasileira. Ganharam não só fãs e dinheiro, mas também votos. Eleitos, usam dinheiro público para financiar seus canais, que continuam gerando receita em dólar.

Tirando a impossibilidade de quem ainda acredita na democracia unir-se contra o autoritarismo, o que mais me tem preocupado é que, além de não conseguir fazer páreo para o esquema de distribuição de conteúdo da extrema-direita, as lideranças de “oposição” não estão preocupadas num processo de desradicalização do debate público rumo às eleições do ano que vem.

Apesar do desastre da gestão da pandemia, custo a acreditar que o atual presidente chegue à disputa fragilizado. Mas vamos aqui imaginar que ele (oxalá!) perca a Presidência: o que acontece com seus eleitores? E com os parlamentares e governadores que ficam? Este artigo é uma tentativa de organizar o que tenho lido e pensado sobre isso.

Desde a década de 1990, os países do Norte da Europa têm políticas púbicas para lidar com a violência política, especialmente a perpetrada por movimentos da extrema-direita. Nos últimos anos, com a multiplicação dos atentados terroristas e o retorno de jovens combatentes do Estado Islâmico no Iraque e na Síria, o foco dos governos mudou para o extremismo islamista. Mas um estudo de caso do programa sueco detectou, a partir de entrevistas com profissionais que atuam na ponta, que a extrema-direita continua sendo a principal ameaça cotidiana.

Enquanto os islamistas organizam-se em silêncio e emergem apenas em ataques espetaculosos contra civis, o extremismo violento de direita tem mais características de um “terror de baixa intensidade”, que age de maneira visível e contínua visando grupos específicos e desafiando as instituições democráticas com ameaças contra políticos e servidores públicos.  Entretanto, a prevenção tem ficado mais difícil quando “valores anteriormente associados à extrema-direita se tornaram mais convencionais, como a hostilidade contra imigrantes”. Sem dúvida obra dos nossos “ideólogos” do YouTube.

Uma coisa é certa: a abordagem de segurança não é sustentável. Na França, após o ano sangrento de 2015, quando morreram 149 pessoas em 20 ataques terroristas, o governo correu para elaborar um plano de combate ao terrorismo. Em 2017, foram abertos centros para jovens identificados como vulneráveis à radicalização violenta islamista. Nessas instalações, com inspiração militar, todos usam uniforme e obedecem a uma programação rígida de atividades para restaurar o respeito à “autoridade”; em nome da laicidade, não há local para orações, restritas a horários específicos e proibidas de serem coletivas. É claro que o resultado foi um fracasso.

Com a aproximação da eleição presidencial do ano que vem, o presidente Macron tem desavergonhadamente adotado um tom nativista em seu combate ao “separatismo islâmico”; e o faz, frise-se, junto do mainstream do pensamento francês, com oposição basicamente da esquerda radical. Numa reeleição já difícil, em vez de ganhar mais eleitores, ele acaba por credenciar a extrema-direita e, num clima muito parecido com o Brasil de 2018, levar o eleitor a raciocinar: “em que a extrema-direita seria pior?”.

A relatora especial das Nações Unidas sobre  promoção e proteção dos direitos humanos na luta contra o terrorismo, Fionnuala Ní Aoláin, fala sobre o que realmente funciona: encarar as condições que levam as pessoas ao extremismo violento, como a marginalização, a falta de transparência e a corrupção; “somente um envolvimento constante com a complexidade dessas condições irá proveitosamente lidar com o extremismo violento”.

Já no Brasil, a esquerda está mais preocupada em se engajar em guerras quase diárias de hashtags para saber quem define “o assunto mais falado” no Twitter, quem provoca mais “engajamento”. Espetáculo feito para o jornalismo político, fixado na eterna corrida de cavalos e com 24 horas para encher de “conteúdo”. Focar somente na comunicação também não funciona; por aqui fica muito claro como a tentativa de virar a narrativa é um movimento que apenas cerra fileiras, facilmente descartado como defesa do “sistema”.

Desideologizar o debate público é urgente. O que não é o mesmo que despolitizar ou abandonar as ideologias. É não defender algo somente por negação de um discurso oposto, como se faz nas batalhas de hashtags (#forasalles versus #ficasalles). Para ilustrar bem, a campanha de Guilherme Boulos à Prefeitura de São Paulo em 2020 apostou com muito sucesso na desideologização. Se o chamam de invasor de casas, ele vai perguntar o porquê de haver tantos imóveis desocupados na cidade e mostrar que os moradores das ocupações são os trabalhadores ao nosso redor.

Percebeu como a ideologia funda o discurso, mas ele não gira em torno de um pensamento de grupo? Esse é o caminho. Não entendeu ainda como se faz isso? O jeito mais fácil é assistir (novamente) o discurso do ex-presidente Lula em 10 de março após ter reconquistado seus direitos políticos.

A ampla e resistente base da extrema-direita, fortemente interconectada e espalhada por todo o país, não vai simplesmente desaparecer caso o atual presidente não consiga se reeleger. Antagonizar pela esquerda ou tentar fagocitar o discurso pela direita não vai mudar isso. E nunca é demais lembrar que as pesquisas de opinião otimistas divulgadas nas últimas semanas pouco diferem das feitas antes da eleição de 2018.

Wanderley Neves é jornalista. Está no Twitter.

Wanderley Neves

Jornalista especializado em economia e política internacional.