Um sistema tributário que recompense o trabalho, e não a riqueza
Proposta de reforma tributária de Biden nos EUA traz esperança de que a tributação se torne mais justa em outros países
Thiago Álvares Feital
thiago.feitalv@gmail.com
O sonho americano corresponde, em parte, à crença de que nos Estados Unidos as oportunidades estão abertas a todos e que, por meio do trabalho e do esforço pessoal, qualquer um pode prosperar. A ilusão desse sonho se dá às custas do pesadelo negro a que se referia Malcolm X quando disse: “eu não vejo nenhum sonho americano; eu vejo um pesadelo americano.” O sistema tributário é um elemento deste pesadelo, como aponta o direito tributário crítico há décadas.
No dia 31 de abril, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou um ambicioso programa de recuperação econômica e social. Para financiá-lo, a proposta prevê uma reforma tributária focada nas pessoas mais ricas. Contrapondo-se à reforma realizada por Trump em 2017 — que reduziu a carga tributária —, Biden pretende aumentar a tributação da renda das empresas de 21% para 28%, elevar a alíquota máxima do imposto sobre a renda das pessoas físicas de 37% para 39,6%, igualar a carga tributária do trabalho e do capital para indivíduos com renda acima de um milhão de dólares, criar uma carga tributária global mínima e revogar alguns incentivos tributários que privilegiam os mais ricos.
O documento, publicado pela Casa Branca, deixa claro o viés ideológico da reforma. Trata-se de alterar “[…] o Código Tributário, para que os ricos sejam obrigados a jogar pelas mesmas regras que se aplicam a todos os outros. Ela vai garantir que os americanos mais ricos paguem aquilo que devem pagar segundo o direito.”
Alinhado com as propostas da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) — esmiuçadas na última coluna —, o projeto prevê investir na IRS, órgão similar à Receita Federal. Para tornar o sistema tributário mais igualitário, não basta alterar suas regras, é preciso garantir que as regras sejam cumpridas por todos. Isto requer revisar normas jurídicas excessivamente tolerantes com arranjos artificiais criados para reduzir a tributação, mas exige também reforçar a fiscalização, investindo na estrutura necessária para que o Fisco possa realizar seu trabalho.
Entre os incentivos visados pela proposta, está a atribuição de alíquotas reduzidas para os ganhos de capital e a distribuição de dividendos. A hipótese — reduzir os tributos incidentes sobre o capital atrairia investimentos — converteu-se em um dogma na era Thatcher-Reagan que foi disseminado mundo afora com o apoio de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
No Brasil não ficamos imunes à doutrinação. Há incentivo similar na legislação nacional. Contudo, como conclui um volume cada vez maior de estudos, se é duvidoso, por um lado, que estas medidas produzam o resultado desejado, por outro, é certo que elas agravam a desigualdade social, pois contribuem para a concentração de renda. Incentivos desta natureza são apropriados pelos mais ricos, pois alcançam manifestações econômicas típicas das camadas mais abastadas da população, aquela que recebe dividendos, e não salários.
Outro ponto de destaque é a proposta de criação de uma carga tributária global mínima para a tributação de empresas. Trata-se de uma espécie de “piso” tributário, um percentual mínimo a ser pago por empresas àquele país, independentemente de onde elas estejam situadas no mundo ou de onde registrem seus lucros. A medida visa a combater a competição fiscal internacional. Buscando reduzir o montante de tributos a pagar, multinacionais podem instalar sua matriz em um país com tributação mais baixa e registrar ali seus lucros, apesar de operar (e faturar) em outros países.
Caso seja aprovada, todas as empresas em operação nos Estados Unidos que tenham deslocado parte de sua operação para países com tributação inferior deverão pagar nos Estados Unidos o valor correspondente à diferença entre o tributo global mínimo e o tributo recolhido no outro país. Se o tributo global mínimo for de 20%, por exemplo, uma empresa que registre seus lucros em um país que os tribute a 5% terá de pagar aos Estados Unidos a diferença de 15%.
Paraísos fiscais possuem três características que os tornam atrativos para essas empresas: baixa fiscalização, baixa tributação e alto nível de sigilo bancário. Casos emblemáticos são o da Apple — que está sediada para fins fiscais na Irlanda, mas registra sua receita em Jersey, uma ilha no canal da Mancha — e da Amazon — sediada em Luxemburgo. A proposta de Biden ataca o problema da evasão fiscal — cuja dimensão foi revelada pelo ICIJ (em português, a sigla de Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos) nos Panama Papers e Paradise Papers — e estimula outros países a fazer o mesmo.
O plano de Biden também se volta para as regras relativas à tributação de heranças. Atualmente, a legislação permite que a valorização dos bens transmitidos por herança seja desconsiderada no cálculo do imposto que será pago pelos herdeiros. A proposta está alinhada com o relatório da OCDE publicado em 11 de maio. No documento, a entidade reforça o papel da taxação de heranças na obtenção de receitas e na realização da igualdade. O tributo contribui para reduzir a concentração de renda e é mais eficiente do que outras alternativas, sendo particularmente importante, segundo a OCDE, nos países em que a tributação da renda derivada do capital e da riqueza são baixas. É o caso do Brasil que, por estes critérios, deveria tributar fortemente estas transferências patrimoniais. No entanto, somos um dos países que menos tributa as heranças, o que ajuda a explicar o fato de sermos líderes em concentração de renda no mundo.
As propostas de Biden terão de percorrer um longo caminho antes de se concretizar. As repercussões recentes apontam que o plano sofrerá resistência do mercado financeiro. Mas a sua apresentação traz alguma esperança. Por lá, há a esperança de que o sistema tributário estadunidense se torne mais justo — menos racista e menos sexista. Por aqui, a esperança de que nós também sejamos capazes de alargar o debate político sobre a tributação para além de tecnicalidades e de dogmas estreitos e superados.
Thiago Álvares Feital é advogado e professor. Está no Twitter.