Entre a mentira e o silêncio
Para além do direito legal ao silêncio, testemunhas deveriam ter compromisso ético com a verdade dos fatos
Nestor Santiago
nestor@nestorsantiago.com.br
A mentira anda na pauta do dia. Para os que estamos acompanhando com interesse o desenrolar dos acontecimentos na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI da Covid), esta semana promete surpresas. Foram convocadas, na qualidade de testemunhas, diversas pessoas que participaram diretamente da gestão da pandemia. Entre elas, o ex-ministro da Saúde e general do Exército Eduardo Pazuello, e ainda Mayra Pinheiro, que faz parte da equipe ministerial, é médica e foi apelidada de “Capitã Cloroquina”.
Uma vez convocada como testemunha, a pessoa que irá depor não pode “fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade”. Assim dispõe o artigo 342 do Código Penal, que penaliza quem deveria, ao menos em razão de um comportamento ético, falar a verdade e esclarecer os fatos. A testemunha tem função relevante no esclarecimento de um contexto, pois ela auxilia na reconstrução da verdade no âmbito do procedimento, seja ele judicial ou administrativo. Por isso, o legislador penal prevê penalidades à testemunha mentirosa. E como mentira, entenda-se também a negativa de falar a verdade, ou fazer afirmação falsa sobre os fatos em investigação.
Entretanto, ainda há espaço para o arrependimento, mesmo que a mentira seja a mais “cabeluda”. De acordo com o mesmo artigo 342, se a testemunha se retrata de sua fala omissa, falsa ou mentirosa, antes da sentença a ser proferida pelo juiz, o fato deixa de ser punível. Trata-se de um incentivo legal para que a testemunha seja fiel com o que testemunhou, evitando um vício na decisão judicial, o que poderia prejudicar a administração da justiça.
Ainda há a situação em que a testemunha, em razão de um determinado contexto, pode figurar na condição de investigado, o que parece ser o caso do ex-ministro e também da médica. Neste caso, enquanto testemunhas, têm o direito de permanecer em silêncio, pois a situação jurídica sofre modificação severa em razão de questões a ser reveladas que poderiam prejudicar, futuramente, eventual tese de defesa. Então, uma vez inquirida a testemunha com relação aos fatos comprometedores, em desfavor de sua pessoa, esta poderá invocar a cláusula constitucional e permanecer calada, independentemente de qualquer medida judicial prévia.
Mesmo assim, é comum que testemunhas em uma situação limítrofe e ambígua como esta, de serem enquadradas também como investigadas ou acusadas, recorram ao Poder Judiciário para que lhes seja garantido o direito de silenciar. Concedida a medida judicial, não devem ser compelidas a responder às perguntas que envolvam mera opinião pessoal, ou se manifestar sobre situações que revelem eventual culpabilidade. Contudo, se a pergunta se referir ao fato imputado a terceiro, as testemunhas devem falar a verdade.
Para além das questões jurídicas, deveria haver um compromisso ético com a verdade dos fatos. Isso, porém, talvez seja exigir demais de pessoas cuja única preocupação é prestar vassalagem a um governante que nenhum compromisso tem com as evidências científicas. Governante este que tem a cloroquina como remédio milagroso para a cura da Covid e que, mesmo com mais de 430 mil mortos, ainda gera aglomerações e não usa máscara de proteção.
Nestor Santiago, doutor em Direito, advogado e professor da UFC e Unifor. Está no Instagram e Twitter.