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Escravidão moderna: a sujeira que não pode ficar sob o tapete

Combate ao trabalho análogo à escravidão começa com a divulgação da lista suja de empresas que degradam mão de obra
POR Alex Mourão
Foto: ILO

Combate ao trabalho análogo à escravidão começa com a divulgação da lista suja de empresas que degradam mão de obra

Alex Mourão
alex.mourao5@gmail.com

Vou começar o texto de hoje fazendo uma pergunta: o que o seu cafezinho de todo dia, aquela camisa bonita comprada na loja de departamentos e a cerveja após o expediente têm em comum?

No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu que os autos de infração lavrados por servidores públicos – no caso, auditores do trabalho -, após o trâmite administrativo, são documentos públicos e, portanto, estão dentro da regra da publicidade. São livres para qualquer pessoa. Até aqui, não tem muita novidade. Essa decisão se deu a partir de uma ação da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias, que pedia a declaração de inconstitucionalidade da chamada lista suja do trabalho escravo.

A dita lista é a relação de empregadores que foram flagrados utilizando trabalho análogo à escravidão e serve para o monitoramento e a fiscalização. Desde 2004, primeiro ano da lista, essa vem sendo considerada um exemplo de transparência ativa e um importante instrumento de combate ao trabalho escravo no país. Apesar de não ter, em si, a aplicação de punição, a lista serve como forma de controle social.

A desigualdade e as situações de extrema vulnerabilidade encontradas no Brasil tornam o ambiente propício às modernas formas de escravidão. Diferentemente das maneiras conhecidas no passado – sobretudo em relação ao povo negro da África, que foi traficado, atravessando os mares e marcado pelos ferros -, a moderna face da escravidão é outra. Atualmente, a condição análoga à escravidão não é bem caracterizada por grilhões, mas se aproveita da vulnerabilidade das pessoas para mantê-las trabalhando em condições degradantes e desumanas.

No Brasil, algumas frentes combatem a prática do trabalho escravo: no âmbito trabalhista, ocorrem as fiscalizações dos auditores fiscais do trabalho e dos membros da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, do Ministério Público do Trabalho (MPT). Correndo ao mesmo lado, há também a possibilidade de responsabilização criminal de quem reduz o outro à condição de escravo – é o que está no artigo 149 do Código Penal.

Entre 2016 e 2020, o Ministério Público do Trabalho recebeu mais de seis mil denúncias relacionadas ao trabalho escravo e ao aliciamento de trabalhadores para fins de escravidão. Esses números assustam. E assustam mais ainda quando nos deparamos com conhecidas marcas e empresas envolvidas com a prática.

Muitas vezes as marcas não são ligadas diretamente à tal prática, pois a escravidão não aconteceu em seu chão de fábrica. No entanto, ao utilizar essa mão de obra escravizada em sua cadeia produtiva, por seus fornecedores, essas marcas também são responsáveis. Grandes empresas, apesar de terceirizar partes de suas atividades, devem fiscalizar as práticas de seus fornecedores.

Não vou deixar a pergunta do começo deste texto sem resposta.

Nos trabalhos de fiscalização e combate ao trabalho escravo costumeiramente aparecem produtores rurais abusando da mão de obra de seus trabalhadores, reduzindo-os a condições desumanas, como apontam as fiscalizações nas fazendas de café. Então, aquele nosso inocente café de todas as manhãs pode chegar à nossa mesa nem tão inocente assim. Os trabalhadores são alojados sob lonas rasgadas, sem banheiro e sem as mínimas condições de segurança, além das infinitas dívidas que caracterizam outra forma de exploração, a servidão por dívida.

Esse problema não é exclusivo nas áreas rurais. A escravidão moderna também mostra a sua face nos centros urbanos. As fiscalizações apontam empresas dos mais variados setores, como comércio e construção civil, além do agropecuário.

As oficinas de costura que usam mão de obra de trabalhadores venezuelanos e bolivianos em condições de escravidão, e fornecem seus produtos a grandes cadeias varejistas, são exemplos de casos urbanos de exploração de trabalho degradante nos grandes centros que acabam indo parar nas prateleiras das lojas com os últimos lançamentos.

Recentemente, duas gigantes produtoras de bebidas foram autuadas por uso de trabalho escravo em suas cadeias produtivas. No caso das cervejarias, o trabalho em condições degradantes era em uma empresa transportadora contratada, onde os empregados dormiam dentro dos caminhões, por meses, sem qualquer condição e estrutura de alojamento, sem folga e sem fornecimento de água potável, como se noticiou.

Quando responsabilizadas por trabalho escravo em suas cadeias produtivas, muitas marcas famosas se defendem afirmando que a culpa era da terceirizada ou que não tinham conhecimento. Tal desculpa, porém, é o que se pode chamar de cegueira deliberada e não retira a responsabilidade da contratante. Pelo menos no âmbito trabalhista, todos aqueles que se beneficiam do trabalho análogo à escravidão devem indenizar os trabalhadores.

Sob o ponto de vista penal, o quadro é mais complicado ainda, ao passo que muitas empresas fiscalizadas acabam condenadas a indenizar. A condenação criminal dos responsáveis pela prática de redução à escravidão moderna ainda é bem difícil. Uma pesquisa feita pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas, da Universidade Federal de Minas Gerais aponta que apenas 4,2% de todos os denunciados pelo crime foram condenados. Ou seja, entre 2008 e 2019, apenas 112 pessoas em todo o país foram condenadas.

Ainda segundo a pesquisa, desses 112, apenas 1% dos denunciados poderia ser presos. No mesmo período da pesquisa, foram realizadas quase 3,5 mil operações de combate ao trabalho escravo, com o resgate de mais de 20 mil pessoas. Esse descompasso mostra que, apesar do grande número de pessoas que são escravizadas no Brasil, poucas são responsabilizadas penalmente pela prática desumana.

Infelizmente, a impressão é de que a escravidão moderna é usada como forma de reduzir custos trabalhistas por muitas empresas, degradando ainda mais as condições de trabalho e ampliando a vulnerabilidade das pessoas expostas a tais relações. Se, por um lado, a justiça trabalhista tem aplicado condenações, por outro, a justiça penal ainda não encontrou formas de responsabilização dos que comandam esses esquemas de escravidão.

É estranho – na verdade, muito estranho -, em pleno século XXI, com todos os avanços da civilização, ainda falarmos de escravidão. Mais estranho ainda precisarmos de uma nova roupagem para o termo, como “escravidão moderna” ou “redução à condição análoga a escravidão”. Ao mesmo tempo em que é estranho, é também necessário enfrentar o problema e não escondê-lo.

As notas de empresas afirmando seu “comprometimento com a saúde dos funcionários e boas práticas” não são suficientes, pois não enfrentam o problema como ele de fato é. A lista suja precisa ser pública, como definiu o STF, e os consumidores precisam entender o seu papel nessa fiscalização. A pressão do consumidor pode ser, aliada à responsabilização trabalhista e penal, um importante vetor para a erradicação dessa prática abusiva que ainda é tão comum no país.

Alex Mourão é professor universitário. Está no Instagram.

Alex Mourão

Professor universitário, graduado em Filosofia e Direito, mestre e doutorando em políticas públicas.