“Pandemials” e a nova geração de trabalhos precários
Entre os danos colaterais da pandemia, o desencanto dos jovens quanto ao futuro do trabalho
Paulo Carvalho
paulomarquesdecarvalho@gmail.com
Esta semana, vivi um marco importante: o primeiro encontro com os alunos depois da reabertura para as aulas presenciais práticas. Pedi um Uber para ir à faculdade e conheci o Alfredo, jovem de 21 anos, recém-formado em um curso de ensino superior na Universidade Federal do Ceará. Não precisei perguntar sobre as perspectivas profissionais para ele contar que está trabalhando como motorista de aplicativo até encontrar algo melhor.
Ele contou que até foi chamado para trabalhar em uma empresa depois que se formou, mas a proposta salarial era menor do que a bolsa que ganhava quando estagiava enquanto cursava a faculdade. Arriscou sair da casa dos pais, mas teve que voltar durante a pandemia, de modo que não conseguiria pagar suas contas e ter o mínimo de independência financeira. O bom emprego que acreditou que o diploma lhe possibilitaria estava bem mais difícil do que imaginou um dia.
Como professor universitário, vivo com os alunos as angústias e indefinições sobre os seus primeiros passos da vida adulta e, claro, especialmente, sobre o mercado de trabalho que enfrentarão. A sala de aula é também um camarote para reparar a passagem do tempo, através das gerações de jovens desfilando suas referências, músicas, roupas, performances e inquietações. Lembro-me bem da aula em que fiz menção aos atentados de 11 de setembro de 2001 e os alunos me disseram que não eram nem nascidos naquela data. Aquela constatação confirmou, definitivamente, que minha geração era outra. Eu, carimbado como da antenada Geração Y, que viveu a revolução da chegada da internet, já represento um tempo distante.
Cada geração tem o perfil de consumo e os horizontes de trabalho distintos. Os chamados centennials (Geração Z), nascidos em meio aos desastres ecológicos entre 1995 e 2015, já estão em vias de entrar na faculdade ou com o diploma de Ensino Superior na mão. São em torno de 25% da população, nativos digitais, presentes nos stories do Instagram, com repertórios de mundo vindos do YouTube e cursos de massa abertos on-line para além do ensino formal. Muitos deles ingressarão no que Guy Standing chama de “precariado”, um neologismo que combina proletariado com o trabalho precário. São trabalhadores sem uma comunidade ocupacional específica e sem a relação de confiança usufruídas dos contratos típicos de trabalho com carteira assinada.
A flexibilidade no mundo do trabalho, a ausência de senso de estabilidade e a exclusão no sistema de solidariedade social previdenciário resultam em uma ausência de confiança no Estado. É um exército de jovens com diplomas de nível médio ou superior que se submete a trabalhos com status de rendimento abaixo de sua qualificação. Seu maior desafio seria adaptar-se ao mercado após a crise financeira da última década. A pandemia mostrou que o abismo é bem maior.
Falando em qualificação, a Unesco alertou para uma “emergência global na educação”, indicando que há hoje o número exorbitante de 24 milhões de estudantes no mundo sob o risco de desistirem da escola neste contexto de emergência sanitária. Trata-se de uma geração que estampará a cicatriz da pandemia e que será penalizada a curto, médio e longo prazo.
O Fórum Econômico Mundial apontou que 30% dos estudantes em todo o mundo não têm acesso à tecnologia necessária para participar do ensino à distância. Um estudo do Relatório de Risco Global 2021 alerta para a ameaça de nascer uma “subclasse digital” de trabalhadores.
Nem todos os jovens acompanharam o ritmo de digitalização das interações humanas promovido pela pandemia. Alguns ficaram em uma lacuna digital que será sentida por uma geração que já vem sendo qualificada como os pandemials. São jovens com idade entre 15 e 24 anos, que já vinham acumulando o peso de um sistema educacional desatualizado e a ressaca de uma crise financeira. E hoje vivenciam os últimos anos escolares e uma parte de seus anos no Ensino Superior durante a pandemia, o que agrava o seu sentimento de desilusão com o futuro do trabalho.
No cenário brasileiro, os dados não trazem esperanças. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-C), do IBGE, o número de desempregados(as) no Brasil atingiu 14,4 milhões de pessoas no primeiro trimestre deste ano, representando 2,4 milhões de pessoas desocupadas a mais do que no mesmo período do ano passado. Entre a população ocupada, a taxa de informalidade atingiu 39,6%. Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicada em abril deste ano, confirmou que o impacto da pandemia continua maior para os trabalhadores jovens, principalmente entre os menos escolarizados.
As consequências socioeconômicas da pandemia já nos entristecem no presente e doem um pouco mais ao sinalizarem um futuro embargado para os jovens, sobretudo em um país marcado de desigualdades sociais como o Brasil. Ao me despedir de Alfredo, penso no suor e dedicação que movem cada estudante até a conquista de um diploma. Penso nos sonhos e expectativas que vão para debaixo do tapete quando a realidade bate à porta.
Cheguei cabisbaixo na faculdade. Mas, ao reencontrar meus alunos, sou também abastecido pelo vigor da juventude que carrega uma espécie de esperança resistente, mesmo quando o horizonte se descortina dessa forma tão nebulosa.
Paulo Carvalho é professor de Direito do Trabalho e doutor em Ciências jurídico-políticas pela Universidade de Lisboa. Pode ser encontrado no Instagram.