Morremos um pouco com Vitórya
“Vocês, homens, tomam porre e nos matam. Querem foder e nos matam. Estão furiosos e nos matam. Querem diversão e nos matam. Descobrem nossos amantes e nos matam. São abandonados e nos matam. Arranjam uma amante e nos matam. São humilhados e nos matam. Voltam do trabalho cansados e nos matam. E, no tribunal, todos dizem que a culpa é nossa.”
Mulheres Empilhadas – Patrícia Melo
Imagine que você está na praça de alimentação do shopping onde fica a cafeteria em que você trabalha. É horário de almoço, você está comendo um pouco enquanto descansa do turno da manhã. O shopping está lotado e a sua cabeça também está cheia de pensamentos. Pensa que precisa estudar mais tarde, pensa na última conversa que teve com sua mãe, pensa no curso de técnico em enfermagem que você está fazendo e pensa no futuro. Será que dá pra estudar no exterior? São muitos planos e você tem só 22 anos, há muito o que se pensar e sonhar.
Esse foi um exercício de imaginar o que se passava pela mente de Vitórya Melissa Mota, de 22 anos, na última quarta-feira, dia 2 de junho. Vitórya trabalhava em uma cafeteria no Plaza Shopping, na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro. Ela era estudante de um curso técnico em enfermagem e, segundo amigos, pensava em entrar para a universidade para ser enfermeira e em tentar outras graduações fora do país. Tudo isso foi interrompido quando Vitórya foi abordada por Matheus dos Santos da Silva, um colega de turma do curso técnico em enfermagem, de 21 anos.
Corta para o circuito interno de vigilância do shopping. Pouco depois das 13 horas daquela quarta-feira, Matheus se aproxima da mesa em que Vitórya está sentada. Eles conversam brevemente enquanto Matheus remexe algo em uma bolsa que carrega no ombro. Depois de alguns minutos, ele saca uma faca de cozinha e atinge Vitórya incontáveis vezes. As pessoas em volta correm do local. O vídeo não tem som, mas é possível imaginar o barulho, a correria, os gritos. Ao final da filmagem, aparece um homem com um celular na mão tentando se aproximar para filmar mais de perto a agressão letal a mais uma mulher.
Segundo informações apuradas pela polícia com amigos da vítima, o agressor esfaqueou Vitórya porque nutria por ela sentimentos amorosos não correspondidos. Matheus premeditou o crime e comprou a faca utilizada para o assassinato minutos antes, em uma loja do próprio shopping. Vitórya mal pôde ser socorrida: a gravidade dos ferimentos foi tamanha que ela faleceu antes mesmo de chegar ao hospital.
Uma jovem mulher foi morta porque um homem adulto escolheu reagir violentamente para expressar poder e posse sobre a vida da vítima, ceifando um futuro e privando os familiares e amigos de Vitórya da sua convivência. Ao contrário do que se pensava até pouco tempo atrás, o feminicídio não é um crime cometido por amor, por paixão ou por uma “loucura” momentânea: é uma forma de violência letal contra mulheres de caráter altamente discriminatório, pois admite que violações motivadas pelo gênero se abatam sobre nossos corpos e que sejamos vistas como matáveis.
Permite também que a culpa das agressões seja colocada sob nossa responsabilidade, afinal de contas, a versão que prevalece é a de que foi a vítima que não correspondeu aos sentimentos do agressor. No entanto, Matheus, como tantos outros acusados por feminicídio, não agiu por conta de sentimentos não correspondidos ou por uma decepção amorosa. Ele escolheu cometer um feminicídio porque acredita que qualquer pessoa que ele desejasse tinha o dever de obedecer às suas expectativas e, a partir do momento em que isso não se concretiza, ele está autorizado a reagir de forma violenta contra quem não se submete às suas exigências, executando à força o domínio que lhe foi negado.
Feminicídios não dizem respeito a amor, da mesma forma que a violência sexual não ocorre por causa do desejo sexual: são violências de gênero intrinsecamente ligadas às relações desiguais de poder e à legitimação da posse sobre o corpo e as vontades das mulheres.
Vitórya é mais uma vítima de um crime onipresente no noticiário brasileiro. Se fizéssemos um minuto de silêncio por cada mulher vitimada por feminicídio durante o ano de 2020, ficaríamos calados por 1338 minutos, quase 23 horas completas. Mas Vitórya, assim como tantas outras vítimas, não é apenas um minuto de silêncio, é uma vida inteira de ausência.