A arquitetura não é hostil, a sociedade é
Instalação de pedras, pontas de lança, pinos e divisórias em espaços públicos deve ser proibida pelo Estatuto da Cidade por atentar ao direito à cidade
Rodrigo Iacovini
rodrigo@polis.org.br
Uma notícia boa flutua solitária como uma garrafa atirada ao mar de tragédias que o Brasil navega: foi aprovado nesta semana no Senado projeto de lei de autoria do senador Fabiano Contarato (REDE/ES) para o banimento da “arquitetura hostil” em espaços de uso público. No início de fevereiro, ganhou repercussão nacional a atitude do Padre Julio Lancelotti de derrubar a marretadas pedras instaladas pela Prefeitura de São Paulo sob dois viadutos da capital, as quais impossibilitavam que pessoas em situação de rua se abrigassem naqueles espaços.
A instalação desses dispositivos (pedras, pontas de lança, pinos, divisórias, etc.) em espaços públicos é mais uma faceta do processo excludente de produção das cidades brasileiras, o qual reserva espaços, serviços e infraestrutura urbana para uma parcela reduzida da sociedade. Faz sentido, portanto, que se inclua no Estatuto da Cidade, lei federal 10.257 de 2001, uma diretriz que proíba a prática, pois atenta contra o direito à cidade, base do Estatuto e de toda a ordem urbanística brasileira.
Em coluna anterior, já havia apontado que, a exemplo dos planos diretores, a legislação urbanística não tem o condão de surtir efeitos imediatos simplesmente com sua aprovação. Embora bem intencionado e na direção certa, o projeto de lei atinge apenas parte do problema. Na tentativa de reverter uma tendência absurda e desumana, deixa oculto o agente da perversidade. Vamos dar nome aos bois: não é a arquitetura que é hostil, os arquitetos, síndicos, proprietários e gestores de espaço que são.
A reversão do projeto excludente e desumanizador de cidade passa, portanto, pela responsabilização desses sujeitos. Em artigo para o portal ArchDaily, Eduardo Souza e Matheus Pereira lembram que não se pode responsabilizar arquitetos e projetistas por toda a questão relativa à população em situação de rua. De fato, trata-se de um fenômeno muito complexo, com várias dinâmicas sociais e individuais envolvidas. Contudo, arquitetos e projetistas devem, sim, ser responsabilizados pela forma como contribuem para o agravamento dessa situação. Afinal, qual a função social exercida por arquitetos e urbanistas? A que projeto de cidade e de sociedade servem? A quem servem? Quais forças sociais determinam de que forma podem ou não ser usados os espaços públicos?
Concordo plenamente com o alerta dos autores para que não sejam omitidos os moradores em situação de rua no âmbito de projetos e discursos que buscam promover “cidades inclusivas ou para pessoas”. Da mesma forma, não podemos omitir os agentes que promovem a sua exclusão cotidiana, os quais evidentemente vão muito além dos arquitetos e urbanistas. A sociedade brasileira, como um todo, é hostil à população em situação de rua. É hostil também à pobreza e, principalmente, a todo e qualquer processo de redistribuição de riquezas, o que, no caso das cidades, significa redistribuição da terra urbana e dos espaços públicos. O banimento da arquitetura hostil é um passo importantíssimo, mas a jornada para criar cidades acolhedoras ainda é longa.
Rodrigo Faria G. Iacovini é urbanista e coordena a Escola da Cidadania do Instituto Pólis. Está no Twitter e Instagram.