A importância de Mandetta para a CPI da Pandemia
Com depoimento estratégico para oposição, a CPI da Pandemia inicia os trabalhos com o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta
Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com
E eis que são abertas as cortinas do palco da CPI da Covid no Senado Federal. Nesta terça, 4, serão ouvidos os depoimentos dos ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Todas as atenções estarão voltadas àquele que foi o grande antagonista de Bolsonaro no primeiro semestre do ano passado, quando a emergência de saúde começou.
Ex-deputado, titular de dois mandatos na Câmara dos Deputados, o sul mato-grossense Luiz Henrique Mandetta é um político experiente, filiado ao Democratas, que assumiu o Ministério da Saúde no início do governo de Jair Bolsonaro, em janeiro de 2019. Fez uma gestão discreta e apareceu pouco na mídia até o momento em que a crise do coronavírus o levou a assumir o protagonismo esperado para o titular da pasta da Saúde.
Em fevereiro de 2020, a Covid-19 era uma doença totalmente desconhecida, mas com alto potencial de transmissão, que desafiava as barreiras fluidas de um mundo globalizado e hiperconectado. A Organização Mundial da Saúde relutou antes de reconhecer o estado de pandemia, o que levou muitos países a negligenciar o controle sanitário das fronteiras nas viagens intercontinentais. Assim o vírus se disseminou rápida e silenciosamente, de modo que, quando o primeiro caso foi reportado no Brasil, em 26 fevereiro de 2020, já se tinha a transmissão comunitária sustentada ocorrendo sem que o sistema de saúde estivesse preparado para identificar ou mesmo tratar com a doença.
O clima de pânico se disseminou no país quando os casos começaram a se multiplicar nos diferentes estados e os governadores foram levados a decretar os primeiros fechamentos, suspendendo a rotina das pessoas e o ritmo da atividade econômica.
Foi nesse contexto de incerteza e susto que as qualidades retóricas de Mandetta se mostraram muito úteis. Ele empreendeu a estratégia inteligente para o qual era perfeitamente talhado: a de estabelecer uma comunicação oficial diária, divulgando boletins com dados e detalhando medidas a serem tomadas coletivamente. Segundo ele, o objetivo era não só dar transparência aos trabalhos do Ministério, mas evitar a proliferação de fake news e orientar os trabalhos no plano regional e local.
O Ministro da Saúde discreto deu lugar à figura do médico trajado com o colete do SUS, ladeado pelos seus assistentes Wanderson Oliveira, Secretário de Vigilância e Saúde, e João Gabbardo, Secretario-Executivo da pasta. Mandetta falava ao país quase sempre ao fim da tarde, e exibia uma tranquilidade incomum com sua voz pausada e discurso entrecortado por citações literárias, bíblicas, ou máximas de conforto extraídas da cultura popular. A retórica do cuidador casou perfeitamente com sua identidade de médico e, por várias vezes, Mandetta recorreu à ideia forte de que o país era seu paciente e não o abandonaria à própria sorte.
Como o próprio ex-ministro reconhece em seu livro Um paciente chamado Brasil, o processo de personalização que foi potencializado por sua performance comunicativa e pela cobertura televisiva teria desdobramentos políticos inevitáveis. Bolsonaro “ficaria aborrecido se um ministro ganhasse muita evidência em seu governo”, como de fato ficou.
Diante do silêncio e da omissão do chefe do Executivo, coube a Luiz Henrique Mandetta muitas vezes confrontar o presidente em suas declarações difusas e contraditórias, contrárias ao uso de máscara, ao isolamento social e estimuladoras de tratamentos medicamentosos sem eficácia científica comprovada, como a cloroquina.
Em poucas semanas, a tensão entre Governo Federal e o ministro da saúde tornou insustentável a permanência de Mandetta no cargo, e o Poder Legislativo não foi capaz de conter a sua demissão, que aconteceu em 16 de abril de 2020. O ex-deputado revela sem maiores pudores que “havia um descompasso entre o grau de entendimento da equipe do Ministério da Saúde sobre a dramaticidade do momento e o restante do governo”.
Mandetta tem a seu favor um trunfo importante: nunca se dobrou às interferências de Bolsonaro na condução dos trabalhos do Ministério. Por essa razão, seu depoimento é estratégico para a oposição na Comissão Parlamentar de Inquérito. Sua demissão foi o primeiro passo rumo ao descontrole absoluto representado pela gestão do general Eduardo Pazuello quando esteve à frente na pasta.
Além disso, sua performance calma de bom comunicador, que transparece muitas autoridade, certamente renderá boas citações, prontas a serem exploradas oportunamente na tv, no rádio e nas redes sociais, no que será um longo processo de expiação do governo durante os trabalhos da CPI.
Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.