Bemdito

A internet, a bolha e o acaso

Uma entrevista com o escritor Michel Laub sobre a potência transformadora da internet - para o bem e para o mal - na sociedade e na literatura
POR Jáder Santana
Obra digital "It’s Your Call", de Liu Jiakun, 2015

Uma entrevista com o escritor Michel Laub sobre a potência transformadora da internet – para o bem e para o mal – na sociedade e na literatura

Jáder Santana
jaderstn@gmail.com

Nos últimos dois romances do escritor brasileiro Michel Laub, a internet aparece como lugar de convivência, violência e vingança. Em O tribunal da quinta-feira, de 2016, uma mulher abandonada intercepta mensagens privadas – chulas, mas privadas – do ex e as divulga na rede, gerando uma onda de cancelamento que compromete imagem e carreira do protagonista. Em Solução de dois estados, de 2020, uma artista performática que borra os limites entre o pornô e a arte é agredida com uma barra de ferro diante do olhar curioso de milhares de espectadores.

Em Berlim, de onde assiste com atenção ao desenrolar da crise política e sanitária no Brasil, Laub conversou com o Bemdito ao longo das duas últimas semanas por Whatsapp. Partindo de reflexões sobre o papel da internet no estabelecimento de novas condutas de achaque e ódio, falou sobre cultura do cancelamento e moralidade. Citando as bolhas de comportamento que se definem nesse cenário, lamentou a perda do acaso e da surpresa, elementos essenciais para a criatividade e a arte.

Expandido as reflexões de seus últimos romances, comentou ainda o papel da religião – e das igrejas neopentecostais – como estrutura repleta de contradições que representa, ao mesmo tempo, a possibilidade de acolhimento e a interferência obscurantista nas ações do Estado.    

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Bemdito // A internet tem um peso importante nos seus dois últimos romances. Aparece como ferramenta de exposição de intimidades, uma exposição que, muitas vezes, não é desejada pelo exposto. Ao mesmo tempo, é uma ferramenta de “ideologização” e convencimento, como o uso que é feito pelos protagonistas de Solução de dois estados. Como você enxerga o ambiente virtual enquanto lugar de convivências e conflitos? A internet é um lugar violento por natureza?

Michel Laub // No início vi a internet com muito otimismo, como um espaço de liberdade, uma coisa revolucionária. De uns tempos pra cá, como todo mundo, passei a ver com muito mais ceticismo e até com pessimismo. O que mudou, ali pelo meio dos 2000, foi que a gente percebeu que esses não são meios neutros. As próprias corporações foram descobrindo maneiras de explorar isso. Então, naturalmente, nossa experiência online se tornou muito menos livre do que era. 

Não interessa muito se a natureza desse meio é violenta em si, interessa que ela possibilita essa violência, e essa violência está dando lucro pra essas empresas. No momento em que isso for mudado – e talvez seja possível no futuro, com impostos sobre dados, alguma forma de controle que vai ter que haver -, talvez isso mude. Se as empresas conseguissem ter o maior lucro possível com paz e amor, elas teriam, mas no momento, de acordo com o uso que se faz da tecnologia e com o que se conhece da arquitetura das redes, não é possível. 

Bemdito // Apesar dessa violência virtual estar em primeiro plano nos romances, existe um contraponto interessante, porque também existe uma violência em ambiente analógico, pré-internet, que é igualmente desestabilizadora. Existe algum lugar seguro, isento dessa violência?

Laub // Acho que tem uma constância em todos os meus livros, eles são sempre sobre identidade individual, então acabam sendo histórias de choque entre a essência de cada um, a essência que a pessoa acha que ela tem, e a forma como o mundo vê aquilo. É uma tensão que, nos livros, acaba sempre descambando pra algum tipo de intolerância ou violência.

Não sei o que seria um lugar seguro. Viver é entrar nesse choque constante, um choque entre nossa própria identidade e a forma como o mundo nos vê. O que aconteceu de uns livros pra cá é que eu acabei tendo mais enfoque nessa questão da violência física. O Tribunal tinha a coisa toda virtual, mas tinha uma história anterior que era muito violenta concretamente. Até a história da surra da travesti, que o amigo do narrador assiste. No Diário da queda tem toda aquela coisa de bullying no colégio, e agora, nesse, tem a surra física da Raquel, fora as violências históricas todas que são citadas. 

O escritor Michel Laub (Foto: Divulgação)

Bemdito // O Tribunal fala de cancelamento antes desse termo ser cunhado. O livro foi lançado em 2016. Imagino que tenha sido escrito um ou dois anos antes. Parece mais atual hoje do que cinco anos atrás. O Francisco Bosco, no A vítima tem sempre razão?, de 2017, escreve que um dos traços definidores de linchamentos digitais é que a humilhação dos outros se torna uma maneira de se obter a elevação da própria autoestima e que há nos linchamentos um gozo perverso que é autorizado pela crença de superioridade moral. Como você enxerga a exacerbação dessa cultura de cancelamento? Estamos, em 2021, mais predispostos a apontar o dedo e submeter os “cancelados” à humilhação pública? 

Laub // Acho que tem dois lados. Um é esse que você aponta, que era uma coisa que já dava pra enxergar na época. As coisas tinham um outro nome, mas elas eram muito semelhantes. Tem vários aspectos nisso, inclusive aspectos positivos que na época eram possíveis de se ver, como a questão da luta de coletivos contra grandes instituições e corporações. O que me preocupou ali e me fez escrever o livro foi o início de campanhas desse tipo contra pessoas que não eram públicas, eram comuns, eventualmente até privilegiadas, mas que não tinham pedido pra entrar nessa arena de debate público. Eram disparadas por um deslize numa fala, um gesto errado de uma pessoa que não estava pronta ou treinada para lidar com comunicação de massa – que é o que essas redes são, no fundo. Essa pessoa acabava desarmada diante desses grandes movimentos coletivos.

Mas eu acho que o que aconteceu de lá pra cá foi essa exacerbação, esse aumento. E houve também uma banalização disso. Então me dá a impressão de que hoje, em 2021, uma pessoa que é cancelada faz até piada com isso, daqui a uma semana já não está mais cancelada, não dá tanta bola pra isso porque vê que tanta gente é cancelada o tempo inteiro. Acho que as gerações que cresceram nessa cultura têm uma visão diferente do que era um vexame público em relação às gerações anteriores, a minha por exemplo. Pra mim, acordar um dia e encontrar o Twitter inteiro falando de você, se acontecesse comigo naquela época, eu teria uma reação muito ruim, seria uma coisa muito penosa. Hoje acho que eu estaria mais preparado pra isso. Uma coisa curiosa é que a própria natureza da rede se resolve, ela vai apontando os próprios caminhos, infelizmente não pelo lado que seria o ideal, o lado moral da coisa, de uma consciência maior de todos, digamos assim, mas sim pelo excesso, pela mudança de parâmetros pra baixo. Todo mundo se acostumou à vileza das coisas, ao narcisismo geral, às injustiças, a tal ponto que hoje não se dá tanta bola pra isso.

Bemdito // Muitos autores têm trabalhado as interações em rede como elemento importante em seus romances. Imediatamente penso no Jonathan Franzen e seu Pureza. É uma ferramenta que saiu das narrativas de ficção científica para adentrar o campo do real. A internet é um campo vasto a ser explorado em narrativas literárias?

Laub // Nossa vida hoje é isso. Essa noção do que era virtual e real se diluiu muito nos últimos anos, com a pandemia mais ainda. Mas tudo tem dois lados. A gente vive na internet, nossa cidade muitas vezes é a própria internet. Agora, por exemplo, eu tô em Berlim e boa parte do dia eu passo ligado às coisas do Brasil, lendo notícias brasileiras. Tô mais preocupado às vezes com a política brasileira do que com as coisas que estão acontecendo aqui, que às vezes eu mal sei quais são.

Por outro lado, talvez a pandemia tenha nos trazido essa consciência de que a vida real, concreta, como se chamava antigamente, ainda existe. Então, a noção de que o real e o virtual são a mesma coisa também foi relativizada agora, porque essa melancolia que a gente sente na quarentena vem muito dessa falta de coisas que a vida concreta tem. Por exemplo, o acaso, que na vida online é algo cada vez menos provável, por causa dos algoritmos e bolhas e etc. Esse acaso de sair na rua, no bar, encontrar alguém por acaso, conhecer alguém por acaso, essas coisas a gente perdeu na quarentena. E talvez quando a gente volte disso, se um dia a vida voltar ao normal, talvez a tendência dos romances seja justamente o contrário, se centrar nessa vida concreta de novo. Ou então, continuando assim como a gente tá, talvez tenha um movimento nostálgico, de falar da cidade, alguma coisa assim.

Bemdito // Falar sobre a perda desse acaso é falar e sobre como os algoritmos e as bolhas comprometem uma experiência que, de certo modo, é fundamental para o escritor e para a literatura. Como você lida com isso?

Laub // Como todo mundo, tentando manter a sanidade. Nos romances eu ainda escrevo sobre uma perspectiva antiga, digamos. O que me interessa segue sendo a vida como ela podia ser definida nos anos 1990 ou um século antes. O mundo virtual é um elemento disso, que faz sentido em termos realistas nas histórias, mas não é o mundo em si dos romances. O Tribunal da quinta-feira, por exemplo, é um livro sobre as consequências reais de algo que ocorre no espaço virtual.

Bemdito // Em Solução você fala das igrejas neopentecostais, mas sua escrita sobre o tema, apesar do ódio de uma das personagens, não é preconceituosa. Muito pelo contrário, é um olhar de acolhimento e interesse no sentido de descobrir o que está por trás dessa fé, de investigar as dores que encontram redenção nesse sistema. Mas, apesar desse interesse do autor, temos também a personagem que denuncia o que pode estar por trás desse modelo, sugerindo inclusive uma relação com a milícia. Nesse sentido, é um romance atualíssimo em um Brasil onde as igrejas neopentecostais são, mais que uma força religiosa, uma força política e de mobilização social. Na vida real, fora da ficção, você também enxerga esse sistema com um olhar menos acusatório?

Laub // É como com qualquer religião. Existe a questão da fé, que é indiscutível, cada um tem a sua, não há o que dizer sobre isso. Tem uma questão cultural de organização de comunidades, que quase sempre em religiões é algo positivo, que dá sentido e identidade pra vida das pessoas, ajuda pessoas que não têm mais nada, gente que está em desespero e por aí vai. Não tem como não respeitar isso. E uma terceira dimensão é a do poder dessas igrejas e de qualquer igreja, seja cristã, judaica, muçulmana. Igreja no sentido do poder terreno da religião, que aí é uma estrutura de poder como qualquer outra, como qualquer partido, e tem lá suas contradições, seus males. No Brasil de hoje, as igrejas evangélicas, pelo menos essas maiores e mais conhecidas, pra minha sensibilidade, pras minhas crenças políticas, acabam sendo algo nefasto. Se a gente tivesse no Brasil uma separação total dessas coisas, entre um estado laico e a prática das religiões, não haveria nenhum problema. Mas de dez, quinze, vinte anos pra cá, houve uma tomada do espaço público e político por essas instituições e aí não tem como, neutramente, a gente apenas respeitar. A gente tem que combater essa presença que hoje em dia representa o obscurantismo.

Claro que num romance, pelo menos um romance como esse, não faria sentido ficar apenas condenando essas coisas. Eu tô falando do ponto de vista do indivíduo, essas personagens que têm as razões delas. O sujeito não vai parar lá só porque ele tem o desejo e a ganância de explorar o outro. Também pode ter dentro dele um sentimento de crença, de achar que realmente está ajudando as pessoas. Alexandre é um personagem que fica numa fronteira, porque ele se diz até um personagem não muito religioso, de não muita fé sobrenatural, digamos assim, mas que tem muita fé nessa ideia da prosperidade, que seria uma ideia que é um pouco a dessas igrejas, uma religião da prosperidade. E ele até incorpora como algo genuíno. Claro que ele ganha dinheiro e poder e prestígio com isso, as duas coisas andam juntas, como quase tudo na vida. Muitas vezes nossas crenças e ideologias têm um lado que é público, desinteressado, e outro lado que é proveitoso pra gente, pra nossa identidade, pra nossa carreira. 

Bemdito // Solução também fala de dinheiro. O dinheiro que é, de certa forma, objetivo final dos esforços do pai dos protagonistas, um homem que “subiu na vida”, e que é também o elemento desestabilizador do núcleo familiar. Ao mesmo tempo, apesar de desestabilizar a família, permite a estabilização do indivíduo – Raquel, que estuda fora porque tem o dinheiro do pai e que, apesar de sua arte subversiva, é mantida por patrocínios de um banco, e Alexandre, que construiu um império para dar o melhor aos filhos. De certa forma, trata-se de uma trama que ilustra o materialismo histórico em um microcosmo familiar e seus reflexos na sociedade. Existe uma motivação econômica por trás dos conflitos íntimos?

Laub // Eu já tinha tratado em alguns livros desse assunto, mas de fato era uma coisa menos importante que o drama psicológico. No Segundo tempo, de 2006, até tinha uma história do pai que quebrava com o plano cruzado. Mas até por a história não ter tanta importância naquele livro lá, que era muito mais centrado no drama psicológico, eu não acho que isso marca uma mudança na obra como um todo. Isso acontece a partir do Diário da queda, de 2011, que é quando eu continuo falando de identidade, indivíduo versus o mundo, mas agora num escopo maior, com mais questões históricas, a especificidade da história, da história judaica, no caso do Diário da queda, ou da história da tecnologia das redes sociais, da epidemia da aids no Tribunal, e no Solução uma coisa sobre a história brasileira. De qualquer maneira, são questões que transcendem o mero drama individual. Você tem razão. É um livro no qual o dinheiro tem mais importância do que em todos os meus livros. No caso do Diário, por exemplo, tem uma questão de classe, mas ela tá mais vinculada à questão cultural.

Bemdito // Os dois livros são marcados por um clima de ressentimento e ódio entre as personagens, ao contrário do Diário da queda, por exemplo, que vejo mais como um livro que trata da busca por reconciliação com o passado, e do A maçã envenenada, que fala muito sobre paixão, ambos com uma pegada mais lírica, mais memorialística. Essa mudança de tom foi planejada ou foi algo que se impôs por motivos externos?

Laub // Sim, o motivo principal provavelmente é a mudança do cenário. A gente escreve sempre dentro de uma realidade e é impossível que essa realidade não se reflita naquilo que a gente escreve. Mas também é uma evolução minha como escritor. É provável que alguma das ilusões que eu tinha mais cedo na vida, principalmente a ilusão de que individualmente era possível transcender o contexto no qual a gente tá inserido, essa ilusão foi se perdendo com os anos. Isso é uma coisa mais ou menos natural da idade. Quando você é muito novo, na adolescência, na juventude, a tendência é você achar que é uma pessoa especial, que é capaz de fazer coisas que nunca foram feitas antes. E à medida que o tempo vai passando, você vai percebendo que na verdade sua vida é razoavelmente comum, ela não tem como escapar de parâmetros de vidas que antes você via como vidas convencionais, as vidas que seus pais e pessoas mais velhas levaram. Isso se traduz na ideia desses livros mais recentes. O contexto externo é bastante importante e, às vezes, muito mais importante até do que o interno. 

O que você chama de reconciliação com o passado vai se tornando mais difícil, e isso eu acho que se reflete nos livros, porque antes essa reconciliação era muito individual, era com o passado individual do personagem, normalmente uma questão de perdão pessoal, de amadurecimento. E agora, não. Agora seria uma reconciliação com o passado histórico, e isso acaba sendo mais complexo, mais difícil. Por isso, talvez, os livros tenham saído um pouco da pegada da culpa e da auto análise e ido um pouco mais pra uma consideração que é mais generalizante, mais coletiva, mais histórica. Claro que uma coisa não exclui a outra, os livros ainda têm essa pegada lá do início da carreira em algum grau. Eu sou o mesmo escritor, isso nunca vai mudar, mas acho que o foco nisso tá um pouco menor do que nos processos coletivos. 

Instalação “Keep Smiling”, de Feng Feng, 2014

Bemdito // Solução é, para mim, uma leitura curiosa, e que não se repete muitas vezes, no sentido de que é impossível ter plena empatia ou pela repulsa pelos protagonistas. Não me refiro ao ato central de violência, a agressão física no palco da conferência, que é um ato abominável sob qualquer ótica. Mas Raquel, por exemplo, pode ser vista como uma garota mimada que nunca amadureceu ou como uma mulher que diariamente rumina seu trauma em arte. Alexandre é o miliciano que se elege deputado, mas é também o filho incompreendido que venceu na vida por seus esforços próprios. A documentarista, vilã por explorar a violência do terceiro mundo de um ponto de vista historicamente colonial e mocinha por ter sido, ela própria, vítima dessa violência. E isso é curioso porque a Leyla Perrone-Moisés escreveu uma crítica sobre o livro, no fim do ano passado, dizendo que o leitor esclarecido vai ter dificuldade em simpatizar com o Alexandre, uma simpatia que só pode ser esperada da classe média “sofrida e desamparada pelo Estado”. Você, como autor, consegue marcar essa diferença entre vilões e mocinhos no romance?

Laub // Uma das questões que me preocupavam no Brasil na época pré eleição, e acho que isso acabou contaminando o livro, era essa discussão sobre ter ou não empatia por uma pessoa levando em conta o que aquela pessoa está fazendo concretamente em relação ao mundo. Acho que o livro é um pouco isso. É claro que eu vou me botando na pele de cada personagem, isso é o legal de escrever, e aí cada personagem vai argumentar pra si, puxar pra si a razão da história. Mas na hora em que existe um ato concreto de violência, não interessa muito a subjetividade, o que você passou, o que você pensa. E isso, à sua maneira, é um discurso político sobre o que está acontecendo no Brasil nos últimos anos. A gente tem pessoas que aderiram à barbárie no Brasil, e são pessoas às vezes queridas, próximas da gente, muitas vezes familiares, amigos de infância, e o fato da gente gostar ou ter gostado dessas pessoas não elimina o fato delas terem aderido a essa barbárie. 

Isso aí é meu posicionamento moral em relação ao livro. Mas também esse posicionamento pouco importa porque o livro tem uma vida autônoma. As pessoas acabam vendo ele de diferentes maneiras, tem a leitora que vai achar a personagem feminina caricatural, ou o masculino caricatural, sobre isso não tenho muito controle. O que eu tenho tido como norte nos últimos dois livros, pelo menos, e por algum tempo acho que vou continuar assim, é a ideia de que sempre que você escreve você tem a ideia de confrontar a maré do seu tempo, as certezas do seu tempo. Claro que eu não pretendo fazer nada absolutamente original, mas dá para fazer um esforço pra pelo menos ter um caminho minimamente próprio aí no meio. E um dos discursos mais comuns que existem hoje dentro da própria literatura é esse da identificação do personagem, da simpatia que um livro bom ou série de TV boa ou um filme bom podem causar. Isso vem muito das séries, é aquilo de fazer com que você goste do personagem. E eu não acredito tanto nisso. Acho que isso é válido muitas vezes, tem muitos livros e histórias que são assim. Mas existe uma dimensão dentro da literatura que é outra. Há o personagem que não precisa ser simpático, ele pode ser interessante e só, e isso vai ser legal também. 

Mas nem é disso que tô falando, é da dimensão do discurso mesmo, do texto. Eu acho que um livro como o Solução não é um livro de uma guerra de versões, de quem está certo e quem não está, ele é um aparato em que cada voz, cada timbre de voz dos personagens, cada pergunta da entrevistadora, a separação dos capítulos, a maneira formal como tudo se estrutura ali, dentro do próprio capítulo ou na sequência dos capítulos porque tem jogos com tempo e espaço, eu acho que todo esse aparato junto é aquilo que eu quis dizer com o livro. Isso passa muito pela linguagem e nesse sentido mais estrito da linguagem, uma coisa que muitas vezes quem lê nem percebe, mas na minha cabeça isso tá muito claro. Isso tem muito pouco a ver com eu gostar do personagem Alexandre ou da personagem Raquel. É uma questão de adequação do discurso, ela falar assim usando tal vocabulário, tal sintaxe, e ele falar assado, e no choque desse assim assado se tira alguma coisa que vai chegar até a Brenda documentarista que pensa de outro jeito e a partir daquele choque ela vai pensando em outras perguntas. Tem uma coisa muito miúda de linguagem que ao mesmo tempo é muito grande e muito importante – o discurso literário, a linguagem literária. 

Se eu quisesse fazer um negócio “bem contra o mal”, ou “não existe bem e mal, sou contra o maniqueísmo”, se fosse só isso eu acho que ia ser muito simplório. Isso é uma coisa que qualquer novela de TV hoje tem, personagens contraditórios e tal, eu não acho que isso seja o grande trunfo do livro que eu tentei. Claro que tem gente que vai ler assim, claro que é uma leitura válida, como eu falei, mas na minha cabeça de escritor, e eu sempre penso assim dos livros que escrevi ou vou escrever, pra mim é um continuum, o desafio que vai surgindo a partir de cada livro. No Tribunal eu ensaiei um pouco isso com um personagem que não é exatamente simpático, mas tem domínio da expressão daquilo que ele tem a dizer. E isso me interessava muito, chegar a essa expressão, na exatidão dessa expressão. E em relação a isso, eu acho que o Solução é um passo além porque tem mais de um personagem e as coisas são mais diretas, de certo modo falando do Brasil. Isso pra mim também era um desafio, não ser tão metafórico. Meus livros têm ficado mais diretos, eu acho que é um desafio em relação ao que eu acreditava no início da carreira, que a ficção não precisava tratar das coisas óbvias da realidade. Nesse livro eu trato de coisas óbvias, inclusive. Mas o desafio era fazer isso de uma maneira não óbvia. Espero ter conseguido.

Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. É mestrando em Estudos da Tradução pela UFC e curador da Festa Literária do Ceará (Flac). Está no Instragam.

Serviço
Solução de dois estados
248 páginas
Companhia das Letras
R$ 39,92
Clique para ver

O tribunal da quinta-feira
184 páginas
Companhia das Letras
R$ 42,90
Clique para ver

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.