Bemdito

“A literatura é uma explosão de vetores. Muitos deles não são convenientes”

Entrevista com Lucas Lazzaretti, finalista do prêmio Jabuti
POR Camille C. Branco

Lucas Lazzaretti não para quieto. Doutor em Filosofia, finalista do prêmio Jabuti por seu livro de contos, autor de três outras obras literárias publicadas, ele divide o tempo entre um pós-doutorado na Unicamp, traduções de textos que vão do inglês, ao dinamarquês, ao alemão, passando pelo sueco, produção de ensaios e artigos, criação frenética de originais e contribuições esporádicas ao canal no YouTube Livrada!, conduzido por Yuri Al’Hanati e Murilo Ribas. Seus experimentos passam pela poesia, pelo romance, pelo conto e por gêneros literários híbridos e não afeitos à classificação. Foi com naturalidade que passei de leitora a correspondente virtual, na distância que encobre Belém e Curitiba, onde atualmente Lucas vive. Afiado, furioso e brilhante, Lucas Lazzaretti vem fazendo algumas das coisas mais inovadoras e desafiadoras que li entre escritores contemporâneos brasileiros. Foi por Skype que ele concedeu essa entrevista para os leitores do Bemdito. 

Tu estás fazendo, de longa data, um trânsito que exige alguma flexibilidade e alguma imaginação que é entre ter uma formação filosófica rígida – fizeste uma longa tese sobre Kierkegaard, sobre a qual eu gostaria que falasses um pouco – e, ao mesmo tempo, produzires muita literatura. Em que medida tu achas que as coisas são intercambiáveis – em que medida o Lucas pesquisador toca no escritor e vice-versa – e em que momento surge a necessidade ou convocação de manejar a literatura como escritor?

Eu não acho que haja essa separação, não são funções engavetadas, as coisas são muito mais fluidas do que em princípio a gente vê. Eu tenho uma profissão, que é ser pesquisador de Filosofia e, eventualmente, professor de Filosofia e outra possível profissão (ou um hobby, o que é mais estranho ainda, o anverso da profissão) de escritor. Todas essas coisas servem a um propósito mercadológico, capitalista, mas não dizem nada sobre a atividade em si. A atividade de escrita é literalmente manual, ou escrevo no computador, ou escrevo à mão. E imaginativa. Ela tem bem pouco a ver com eu me profissionalizar em determinada carreira ou outra. Eu poderia ser torneiro mecânico e escrever. Talvez fosse melhor se boa parte dos escritores brasileiros fossem torneiros mecânicos, porque pelo menos eles saberiam alguma coisa do que estão falando. Os conhecimentos que você pega vão penetrar em uma espécie de material esponjoso que vai formando aquela narrativa. Depois você vai ter que cortar, condicionar, acondicionar ela em um determinado ambiente para ela gerir a si mesma e gestar algo. 

Então se eu fosse tomar toda a Filosofia do Kierkegaard para a literatura, ia ser, por um lado, um arremedo do próprio Kierkegaard, que já faz isso e, por outro, seria banal e piegas. Os romances filosóficos muitas vezes acabam naufragando. Não é simplesmente verter uma coisa em outra, mas deixar elas se interpenetrarem. Conhecimentos técnicos e eu conversando com a pessoa que me vende pão na padaria precisam estar em um nível desierarquizado. É completa anarquia, não pode ter prevalência de nenhum sobre o outro. Nem a literatura pode ter prevalência sobre ela mesma. De novo, seria muito melhor se muita gente fosse torneiro mecânico. Não se deve permitir que a literatura vire uma espécie de idealização sobre si, que a eleve para um campo do irrealizável, que deixe de ser o que ela é – narrativa, linguagem concreta. É um cuidado que está presente na literatura desde que ela surge, com Gilgamesh, com os gregos, nos poemas da Índia, com Mahabharata, na poesia chinesa milenar. Cuide pra isso que você está fazendo não virar algo além de si.  

E há outra questão, que é contemporânea: a predileção de algumas pessoas, geralmente advindas de classes sociais privilegiadas, que, crescendo tendo acesso a livros e nenhuma experiência de mundo, começam a fantasiar em cima disso que é talvez metaliterário. Parece que os mesmos meninos criados no condomínio, que desciam para o playground e corriam para casa para tomar Nescau quentinho que a empregada preparava, vão fazer uma rodinha de masturbação e a masturbação vai ser a própria literatura. 

Agora, falando sobre meu trabalho como pesquisador e sobre minha pesquisa, a minha tese tem 800 páginas e para mim faltam 200 para ela estar terminada. Não vai ser publicada, porque vai ter mil páginas e ninguém vai querer publicar. Ela é sobre o problema do fenômeno da existência no Kierkegaard – devir e permanência, a tensão presente nos dois extremos – que, ao tentar analisá-lo, não como ideia, mas como uma concretude, como um fenômeno que se mantém fenômeno, mobiliza toda uma cadeia de conceitos e categorias. Ao fazê-lo, Kierkegaard paga um preço muito grande. Ao lutar contra a tradição anterior à dele, sobretudo o idealismo alemão, ele precisa fazer empréstimos filosóficos. Para tornar possível acessar uma compreensão conceitual sobre esse devir da existência, ele acaba recaindo, no fim, na permanência. Eu tento cobrir quase toda a obra do Kierkegaard, mostrando onde isso acontece: como ele briga com Hegel, como ele toma coisas do Hegel e as altera, pega coisas dos românticos alemães e também asaltera, como ele pega empréstimos da Filosofia cristã protestante ou mesmo do cristianismo primitivo. Esse caldeirão vai produzir uma grande sacada – talvez esse tenha sido o primeiro filósofo a dizer alguma coisa sobre a existência concreta – mas que, ao mesmo tempo, lega um problema para a Filosofia contemporânea, o impasse, a tensão entre o devir e a permanência. 

Em um determinado momento eu falei para ti que, se fosse te definir como escritor, diria que és um escritor clássico manejando uma linguagem e uma temporalidade contemporâneas. Isso acabou desembocando em uma conversa sobre como havia uma dificuldade em retracejar, na tua voz literária, uma espécie de genealogia, ou uma espécie de filiação que marcasse tua escrita. Embora tu gostes muito de criptografar referências na tua obra literária para ver se o leitor as apanha ou não [risos]. Mas imagino que no teu percurso leitor devem ter havido momentos em pensaste “bom, aqui temos uma radicalização do fazer literário”. Queria saber que autores foram esses pra ti. 

Há muitos autores em que é fácil você fazer isso de retracejar linhagens. Não só no Brasil, mas vamos ficar onde a gente tirou o CPF e o RG. Há muitos autores brasileiros que você consegue retracejar para o Jonathan Franzen, ou Safran Foer. Ou um arremedo de Sartre e Albert Camus. Por mais que esses autores vendam muito e publiquem em editoras grandes, isso é fácil de fazer. É claro que houve uma série de autores importantes para mim, eu posso começar a mencionar uma dezena de nomes aqui: desde Machado de Assis, que era imenso para mim quando eu era bem moleque e Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, a Hilda Hilst, o Erico Veríssimo era para mim muito grande… Até um Thomas Bernhard, William T. Vollmann, mais recentemente o Evan Dara, que eu acabei de traduzir… O Don DeLillo. A Virginia Woolf, por exemplo, foi imensa para mim, também. De que serve mencionar dezenas de nomes?

O mais importante é entender – e eu vou entendendo aos poucos – que tem sempre aquele momento em que você olha pra um livro e pensa: “Aqui tem um desafio”. É como se o autor ou a autora dissesse: “Fique em guarda, vamos esgrimar”. Você se sente compelido e pensa que dá para fazer uma passagem inteira descritiva de algo completamente banal como o clima, fazendo uma piada com isso, que é o caso do primeiro parágrafo de O homem sem qualidades, do Musil. Ele faz toda uma descrição técnica daquele dia em Viena para dizer, no final, a frase mais banal da literatura, que é: “era um dia lindo, era uma tarde linda”. Se você copiar, simplesmente, vai dar errado. Mas te desafia a fazer algo naquele caminho.

A gente começa emulando. Quando eu comecei a escrever,  dezesseis, dezessete anos, tinha muito de emulação. Mas depois você começa a desapegar da emulação para responder ao desafio feito. Você quer responder à continuidade da possibilidade de literatura. Contar uma história de amor, contar a história de uma família disfuncional. Isso tudo, a rigor, os gregos já fizeram. Mas eu conto de novo e conto de outra forma, alterando as possibilidades de narrar. Se não tiver essa noção que muitas vezes é tida como experimental, para mim não tem graça. 

Há aí talvez algo da Filosofia, que é o espanto. Você lê um negócio e é tão fantástico e tão maravilhoso que aquilo reorganiza tua percepção sobre o mundo literário e o fazer literário.

Queria falar contigo sobre esse que talvez seja o romance da tua maturidade literária, O escritor morre à beira do rio. É um romance que tem uma série de afirmações e uma série de recusas em relação às muitas tendências daquilo que a gente pode chamar, em abstrato, de literatura contemporânea. É algo que está presente na estilística do livro, na construção da ambientação, que é uma ambientação modorrenta, mortificada, coadunando com o ânimo dos personagens desse livro, na temporalidade, que começa mais lenta e vai se acelerando, na eleição dos temas e assim por diante. Em determinado ponto das nossas conversas, me falaste que esse foi um romance que te custou um fígado de escrita e que só tinhas um para dar. Lendo-o, eu concordo. Queria saber como foi a concepção e execução desse projeto literário e como foi a gestão dessas exigências que ele propunha pra ti como escritor. 

Quando eu publiquei o primeiro livro, o Sombreir – isso foi em 2018, eu escrevi ele quando tinha 23 anos e tinha deixado guardado – eu estava a um mês de ir para os Estados Unidos, onde eu iria morar por um ano, recebi uma fellowship para fazer a pesquisa de doutorado. Lembro de comentar com a Isadora, que é sócia com o Jorge na 7Letras, que eu estava escrevendo um livro que seria completamente insano. Completamente violento. Não lembro se eu estava escrevendo ele de fato, ou escrevia apenas na minha cabeça, porque isso acontece. Mas eu tinha ideia do ambiente, um ambiente que eu conhecia, o interior do Sul do Brasil. Eu tinha os personagens e tinha o núcleo duro do que eu queria falar. Fui pros Estados Unidos, e me dediquei a escrever a tese naquele ano. Quando terminei a tese, eu traduzi um livro do Kierkegaard, o primeiro, que está inédito, para ser vendido [risos]. Voltei para o Brasil e deu tudo errado na minha vida. Foi quando eu retomei o romance, em setembro de 2019, até maio, junho de 2020. Antes disso, eu publiquei o Placenta: estudos

Havia um sentimento de desesperança que não era da minha vida, era da população em geral. Aos poucos eu fui vendo que O escritor morre à beira do rio era eu tentando dar conta desse problema que era a posição da narrativa. Eu queria tornar possível pensar deslocamentos de personagens que ocupam uma posição na narrativa tradicional e  queria fazer eles mudarem de condição. Inverter a lógica narrativa do homem que salva a mulher inocente, para lentamente mostrar que era a mulher que estava ocupando a posição central. E produzir uma ruptura total, que n’ O escritor se dá na parte do Manuscrito. Uma torrente de vozes organizadas mais ou menos em prol de um evento traumático e, ao mesmo tempo, real, completamente crível e brasileiro. Conforme aqueles personagens iam passando por aquelas coisas, aos poucos aquilo me desgastava fisicamente, porque acumulava a situação de violência dentro do romance e a situação de violência fora, que crescia cada vez mais. Veio a pandemia, a mortandade generalizada, continuaram as chacinas perpetradas pela polícia. Me tomou um fígado por tentar equalizar isso em uma narrativa que ficava continuamente se negando enquanto narrativa também. Era uma narrativa que não queria se deixar pegar. A ideia era fazer a violência reverberar. 

Então falemos sobre teu primeiro romance, o Sombreir. É um romance que tu escreveste muito jovem e é uma história que se pode dizer que é de amor, mas de quando o amor acaba. Pelo menos para uma das partes desse casal. E, muito jovem, trazes uma reflexão sobre retórica amorosa que contém uma novidade: quem se desinvestiu desse lugar apaixonado foi a mulher do casal. Enquanto o personagem masculino continua mergulhado nessa relação, na fronteira do próprio desaparecimento. Parece que produziste um Bergman às avessas. Me falaste que tinhas como ideia fazer desse romance o primeiro de uma série, sobre momentos de virada de chave existencial. Como se dá a concepção desse romance e como pensas ele em relação a essa série?

Faz dez anos que eu escrevi esse romance. O que eu posso dizer é que quando o escrevi, tinha essa pretensão de inversão que você viu. A ideia era mostrar que nada é absoluto. Histórias de amor tendem a ter, ainda que escondido, um certo pressuposto de absoluto, de que ou as pessoas tem que ficar juntas, ou então a gente olha por todas as facetas possíveis e não tem como elas ficarem juntas. Tem um quê de determinismo. Ali eu tentava escrever sobre uma posição anti-determinista. Isso eu percebo ao ler quase dez anos depois. 

A ideia do projeto era ser sobre momentos, instantes – o Sombreir se passa em um dia – de acontecimento, de evento existencial, que alteram a vida daquelas pessoas. Um momento de transição, ou de passagem. E tentar tirar da escrita o máximo de um neologismo criado, que é o Sombreir. Quantas pessoas passaram por um término de relacionamento e se sentem nisso que você mencionou, desaparecendo? Sombreindo? A ideia do projeto, do qual eu já tenho os dois próximos romances em mente, são também outros dois neologismos. Quero continuar brincando com ele até o dia da minha morte. 

Sobre o Sombreir, eu queria pegar um dos temas mais banais que existem e tentar contar ele de forma não banal. Não estou convencido de que eu tenha conseguido. Ou de que eu tenha feito isso a contento. A minha impressão é que esse romance passou meio intocado. Não dá pra eu saber.

Dos teus quatro livros publicados em literatura, um deles é de poesia (Memórias do Estábulo). Como leitora, eu sinto que a tua dicção muda bastante na transição de uma expressão para outra. Enquanto na prosa eu te vejo meditativo, bastante controlado, criando as situações num crescendo, na poesia, talvez até pelo formato mais condensado, eu vejo surgirem continuamente imagens que são muito poderosas e também violentas. Isso está presente na tua prosa, mas aparece de imediato na poesia. Como se tu estivesses continuamente empurrando o leitor. Queria saber como é teu trânsito entre as duas expressões e se te consideras preferencialmente um escritor de prosa. 

A verdade nua e crua é que eu não me considero nada. Todo dia eu leio e escrevo. Acontece de ler e escrever coisas que são consideradas prosa, e outras, poesia. Continuo lendo poesia, porque não tem como não ler. Eu me considero isso, alguém que escreve, alguém que lê. Mas eu me sinto menos confortável na escrita de poesia, menos seguro do que na prosa. É o que você falou, a poesia tem esse caráter mais enxuto, mais condensado, a estocada é mais precisa. Na prosa você tem mais amplitude e espaço temporal. E é estranho, porque poesia foi o que eu comecei a escrever antes. Mas nunca cheguei a um termo com ela.

O que eu acho – como você disse, é como se eu estivesse empurrando o leitor – é que talvez na poesia fique mais evidente essa brincadeira que eu faço na prosa com a referência literária. Ali eu estou mencionando um poeta aqui, outro ali, ou copio uma forma, ou tento me apropriar de uma certa temática. Há talvez uma diferença do que eu me encaminhei para ser, enquanto escrita. Vejo que eu tenho tido tendência de ser menos apaixonado, ou violento, como você mencionou, e mais introspectivo para com questões formais. Na poesia eu acho que não consigo superar ninguém. O que acontece é de ter caras de quem quero ser amigo, vivos ou mortos. Um dos caras de que eu mais gosto na poesia contemporânea é um amigo meu, que é o Rodrigo Tadeu Gonçalves. Se trata disso, encontrar trânsitos de afetos e linguagens.

Tiveste um livro (Placenta: estudos) que foi indicado para um prêmio literário importante, que é o Jabuti. Mas a despeito dessa indicação, nas nossas conversas, tu tens uma série de críticas a pelo menos duas tendências na literatura contemporânea. A primeira delas é uma centralidade excessiva no eu, uma certa fixação em extrair desse eu um material literário. E a outra é uma tentativa de escrever uma literatura politicamente engajada, mas que o faz muitas vezes sem muita complexidade, sem muita nuance. E, ao mesmo tempo, não dá para dizer que produzes literatura desapaixonada, teus temas são emocionalmente muito carregados. Por que consideras essas duas tendências problemáticas? E o que gostarias de ver em literatura contemporânea?

Talvez elas sejam problemáticas por uma questão conjunta. Talvez um excesso de eu seja o sintoma de uma incapacidade para perceber a complexidade das coisas, e vice-versa. É auto-evidente para qualquer pessoa que não está com a cabeça enfiada no rabo que a gente vive num país fascista, facínora, extremamente racista, extremamente misógino. Não precisa fazer esforço nenhum. Eu digo um país, mas isso é completamente passível de ser estendido para a América Latina, para a América toda e para o mundo todo. A forma de organização política, social e econômica do nosso mundo tá aí. Mas literatura não é Sociologia, não é Antropologia, não é Teoria Política. Literatura não pode ser panfletarismo, eu querendo massagear meu próprio ego, ou de uma certa classe a qual eu pertenço, que tem uma grande culpa e que tenta expiar essa culpa tratando de temas de maneira leviana. E não se trata de relativizar, e sim de complexificar a cena. 

Quando você tem um excesso de eu, você tem um apagamento das complexidades e dos pontos de vista. E se eu não produzo condições de proliferação de pontos de vista, isso que se fala muito hoje, o local de fala, também se torna hegemônico. E você recai no problema inicial, de ter hegemonias dizendo o que é o certo e o errado, o bom e o ruim. Temas eminentemente políticos na literatura brasileira: ditadura militar – a última, porque a gente não considera as várias outras. De tanto você ler aquilo, você fica: “Ok, eu entendi o sermão, agora me mostre outra coisa que não a simples superfície. Me indique um caminho para além do maniqueísmo fácil”.

Eu não estou dizendo que a literatura não deva ou não possa falar sobre questões políticas ou sobre questões de opressão: eu faço isso o tempo todo. Ela não pode ser monobloco, ter só um vetor. Se a literatura é alguma coisa, ela é uma explosão de vetores. E alguns deles não são convenientes. N’O escritor há um personagem que é completamente escroto e eu não queria redimir ele de nada. Porque, caso contrário, todo mundo é malvado ou todo mundo é santo. Ou é oprimido ou é opressor. E o cara é um escroto, ele nem tem força para ser opressor. Talvez falte isso, a gente encontrar o perdedor, o coitado. Eles estavam na literatura. O que é o Angústia do Graciliano Ramos se não um cara bizarro, se condoendo das coisas, ao mesmo tempo em que você vê que ele é o próprio câncer? A Hilda Hilst é fantástica em fazer isso, personagens que não são etiquetados. A sociedade funciona como etiquetamento contínuo, a criminologia mostra isso. Ela vai etiquetar um menino negro da favela como um potencial criminoso. A literatura não pode fazer o mesmo, colocar os personagens e a trama como estereótipos. 

A gente sempre conversa sobre uma condição compartilhada por mim e por ti: tu fizeste uma formação em pós-graduação bastante jovem, és um doutor em Filosofia muito jovem; eu também estou terminando um doutorado em Antropologia em idade precoce, em um contexto nacional de desmonte das universidades, de não incentivo ao debate intelectual público e de a gente estar vivendo mais uma vez sob a égide de um governo profundamente conservador, militarizado e necrófilo. Então é sempre uma constatação um pouco melancólica perceber que a gente continua produzindo intelectualmente em um contexto assim. Como tem sido, para ti, continuar trabalhando nesses termos?

Na pesquisa, eu consegui uma bolsa de pós-doutorado que me salvou, na Unicamp. Mas ela vai acabar e a gente fica desesperado de novo. É inseguro para mim, mas é inseguro em todas as outras áreas. Vai ter muita gente bem formada, sobretudo na minha geração, que teve acesso a mestrado, doutorado, pós-doutorado com bolsa, mas que não consegue se enquadrar. Há três opções: tentar conseguir um concurso aqui e ali, mas cada vez menores, cada vez mais raros; tentar vender sua força de trabalho para universidades privadas, onde você vai ganhar muito pouco, dar muita aula, não ter tempo; ou tentar fazer outra coisa e aí entra o pessoal que vai fazer Uber e afins. Talvez a diferença seja que muita  gente está contando que dentro de um ano as coisas vão mudar. Que acabaria o período de trevas e viria a luz, a salvação. Eu sou um pouco cético, acho que não é bem assim. O que se levou décadas para criar, eles levaram seis anos para destruir. 

Essa é a mesma geração que vai ter que trabalhar na recriação, sem ser ela a beneficiária. É como Moisés levando o povo até a Terra Prometida e não entrando. E acho que muita gente – e eu me incluo – não está com predileção para ser Moisés. Eu não quero ser Moisés de ninguém apesar da barba e da ascendência. O que aconteceu em relação a minha reflexão sobre essa geração profissional foi que, em 2020, por três meses, em uma angústia profunda, eu escrevi um romance novo, que é o Saturno translada, que vai sair esse ano. E eu reflito – nesse sentido ele é bastante contemporâneo – sobre a tragédia da minha geração, que engloba não só a classe média, mas classes mais pobres que ascenderam por meio do estudo, com acesso às universidades. Tínhamos a promessa de que se você se esforçar, se fizer o mestrado e o doutorado, se você se especializar vai ter espaço para você. E de repente vem 2016 e puxa o tapete de todo mundo. Há o golpe contra a Dilma, entra aquele vampiro constitucional e a primeira coisa que eles fazem é tirar o tapete de toda essa geração. O Saturno tenta dar conta dessa melancolia que não é a melancolia da coisa perdida. Não é a melancolia do passado, é uma melancolia do futuro. Inclusive uma melancolia que nossos pais não entendem e que as gerações posteriores talvez não entendam. 

Aqui vem, como um possível antídoto para essa melancolia, uma filiação política, como a que tenho em relação ao anarquismo. Talvez o que o anarquismo ensine é: um certo sonhar grande e ter um ceticismo ainda maior que o sonho. Sobretudo com as soluções grandiosas – um candidato, um líder, uma revolução. E aí há sim uma questão que tangencia a literatura, que é a questão da imaginação. Muitas vezes o que falta para “as esquerdas”, o que quer que isso possa significar, é essa capacidade imaginativa, de ver algo além do que está dado imediatamente. Pensar outras formas de organização social. Você não combate opressão só com oposição de forças. Você a combate desidratando-a. E a possibilidade de você desidratar é produzindo imaginações, caminhos, devires de que ela mesma não dá conta. Que escapam ao domínio dela. Na idade média as pessoas também não imaginavam o mundo sem reis e sem Deus, mas é possível.

Que conselho tu darias para as pessoas que estão em formação e buscam produzir literatura?

Absolutamente nenhum [risos]. O que cada um faz com o limite do seu próprio corpo é problema seu. Não tem nenhum, salvo isso, ler e escrever. Treina. Tem um diálogo Parmênides, do Platão… Sócrates ainda é novinho nesse diálogo. Ele vai encontrar com Parmênides e Parmênides já é famoso. E ele toma um couro do Parmênides. E Parmênides fala: “Você tem que praticar. Faz mais exercício filosófico, depois você volta”. E depois, em outros diálogos, Sócrates reaparece velho, já é o Sócrates que o Oráculo de Delfos declarou como o mais sábio da Grécia. Mas antes teve muita prática. Tanto mais interessantes aqueles escritores que não ficam só lendo literatura. Pessoas que entendem do que estão falando. Que experienciaram coisas na vida. Ficar lendo literatura é importante, mas não é suficiente. Qualquer outra recomendação é fingimento, é mentira, é engodo. Não tem receita secreta.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.