A Meia Banda que nos desperta por inteiro
Era final de 2014, quando o amigo que me dava carona disse ter escutado um dos discos mais lindos da cena brasileira de então. Pôs a Meia Banda para tocar enquanto tentávamos nos desvencilhar do trânsito confuso no centro da cidade. Soou a voz tão terna que me agarrou no primeiro instante, marcada por acordes de uma guitarra mínima e batidas que se arrastavam, prevendo os movimentos do mergulho: “Eu fui parar lá no fim/ Um salto no abismo dos seus poros/ Vou demorar pra cair/ Do alto precipício dos seus olhos”.
Ainda não sabia, mas a faixa intitulada Romance Espacial seria a minha companheira fiel ao longo dos anos seguintes. O disco, conciso no decorrer das suas dez faixas, foi escutado por mim repetidas vezes naquele mesmo dia. A música foi luzindo no interior de minha casa, desde a alegria pura e irresistível de Amina até o passo cada vez mais forte rumo às entranhas de Eu vou ser como a topeira, versão surpreendente da canção do grande compositor português José Afonso, conhecido opositor do regime salazarista nas décadas de 60 e 70 do século passado.
“Essa distância entre nós/ Não dá pra respirar/ Sem sua presença que me faz/ Sobrevoar o mundo tão velho/ Cortar o céu azul/ E te acertar/ Em cheio/ Do polo/ Ao meio/ Num triz”. Na faixa Rastro aéreo, reconheci a voz de Domenico, que também assina a letra, músico que já admirava desde o Projeto +2, ao lado de Moreno Veloso e Kassin. A seguir, veio Clímax, um pico enevoado que desponta no meio da mata como quem precisa tomar fôlego. Após o êxtase, Ney Matogrosso entoou os versos da canção “Vespertina”, a esticar as sílabas numa interpretação lânguida, recheada de desejo: “Paradeiro, sua carne, a carícia/ Claridade, sua cara, a beleza/ O desejo, longos braços, despedida/ Vou-me embora/ A saudade é precisa”.
O amigo que me apresentou a Meia Banda explicou que o projeto carioca, além de contar com Domenico, era composto por Eduardo Manso e Estevão Casé, e liderado por Bruno Di Lullo, baixista da banda Tono. Então era esse tal Bruno o principal responsável pela experiência de maravilhamento na qual eu me encontrava irremediavelmente envolvida dos pés à cabeça. Dele, tempos depois, tornei-me amiga e, embalada por suas canções, conheci parte da cidade do Rio de Janeiro e tomei boas doses de centro e zona sul.
Soube que a Meia Banda havia nascido da vontade de encontrar um escoadouro para composições mais íntimas, a maioria fruto do encontro e do convívio com Domenico Lancellotti. Entre um voo e outro durante a turnê do disco Recanto de Gal Costa, na qual Bruno e Domenico participavam enquanto banda, algumas das composições que viriam a figurar no álbum foram se desenhando em parceria.
Nas composições de Bruno, muitas vezes é Domenico quem propõe a letra, e a sintonia entre os dois é tão bonita que possibilitou pequenas apresentações em duo, tidas como verdadeiras pérolas. Uma delas aconteceu inclusive em Fortaleza, em 2016, no saudoso Salão das Ilusões, espaço fértil da música experimental contemporânea. Tive o prazer de articular essa apresentação, no desejo de encantar a todos os amigos, e ainda guardo aquela noite com muito carinho na memória.
Para dar nome ao projeto, Bruno havia partido da fotografia analógica em preto e branco produzida por ele, na qual se vê em primeiro plano uma bunda redonda e macia. Metade da bunda estampava a capa quadradinha do disco e a outra metade, o verso. Além disso, “banda desenhada” é a expressão utilizada em Portugal para se referir à história em quadrinhos. Ele achou curiosa a associação e decidiu-se pelo modesto nome de Meia Banda, que parece não querer chamar toda atenção que merece.
Segundo Bruno, o novo disco, tão aguardado por aqueles poucos que tiveram contato com o primeiro, está prestes a ser lançado. Para sentir quais as direções das sonoridades presentes no disco, é interessante escutar a apresentação ao vivo da banda no Festival Rockit!, que se encontra disponível nas plataformas digitais. Deram-se outras parcerias no processo de composição e gravação, uma delas com Alberto Continentino, baixista e compositor que já havia colaborado com Bruno.
Ele conta que o segundo disco remete às tentativas de se retomar o elo consigo mesmo e o entorno, a uma busca existencial. Bastante dessa busca se deu no estreitamento de laços afetivos com pajés, músicos indígenas e rituais envolvendo ayahuasca e a ampla medicina dos povos da floresta. Composições como Paranapuã, Ipê, Arara e Integrado parecem ter emergido dessas experiências sensoriais e acessam em nós os seres sutis que há muito deixamos adormecer.