Bemdito

A paixão segundo @gildecar

O domingo desamanheceu com o encantamento doído do poeta Gilmar de Carvalho
POR Magela Lima
"Ele me chamava de Geraldo e eu chamava ele de Gildecar"

O domingo 18 de abril de 2021 desamanheceu com o encantamento doído do poeta Gilmar de Carvalho

Magela Lima
lima.magela@gmail.com

Ele era exuberante e discreto. Era imenso (sabia que era), e adorava passar despercebido. Não era de pompa, de cerimônia, mas gostava de festa. Adorava abraço, adorava conversar. Ouvia como poucos. Falava como ninguém. Era cirúrgico com as palavras. Escrevendo, então. Não teve um texto sequer que ele não tenha dominado. Fez poesia, fez romance, fez teatro, fez notícia, fez crônica, fez crítica, fez propaganda, fez ensaio, fez história, fez tese. Foram tantos e tão maravilhosos Gilmar de Carvalho! Difícil escolher um. Ele também não tinha um predileto. Mudou sempre que quis ou precisou mudar e nunca fez disso um fardo, lidava bem com suas aventuras. Tinha orgulho de não ter virado um velho reacionário, de não acreditar em Terra plana (e muito menos em quem nela acredita) e sonhava viver lúcido e produzindo por muitos e muitos anos. Não deu. Gilmar se foi, levado pela peste, como ele chamava essa coisa desumana de Covid-19.

Nascido em Sobral, por acidente (o pai era promotor de Justiça), veio para Fortaleza ainda criança miúda. Na capital, cresce e se inventa. Embora tenha morado um tempo considerável em São Paulo, onde conclui seu mestrado e seu doutoramento, gostava de dizer que fez duas viagens transformadoras na vida. Em 1968 (aquele ano que nunca terminou), foi ao Rio de Janeiro. Lá, se deslumbrou ao ver o Teatro Oficina em cena com O Rei da Vela e Roda Viva. Evidentemente, não voltou o mesmo para o Ceará. Em 1969, ainda estudante de jornalismo, passa a colaborar com o jornal Gazeta de Notícias. Logo, suas crônicas foram acusadas de pornográficas e subversivas pela turma do golpe, aquele outro, o de 1964. Gilmar chegou, inclusive, a ser intimado a depor, o que, de algum modo, acaba por inviabilizar sua permanência no jornal. Anos depois, já jornalista formado, ele volta à Gazeta de Notícias para editar o suplemento Balaio, pai e mãe de todo e qualquer esforço de jornalismo cultural que tenha sido experimentado no Ceará desde a década de 1970. A revolução de Gilmar sempre se deu em forma de poesia.

Naquele mesmo período, estreia na literatura. Pluralia Tantum: Um livro de legendas é de 1973. Em sua obra inaugural, Gilmar já se anunciava inquieto. Falava de tudo, sem que ninguém soubesse que estava a falar dele mesmo. Ali, por exemplo, tinha muito de sua amizade reveladora com Geraldo Markan, talvez o Gilmar de Carvalho na vida do próprio Gilmar de Carvalho. O velho Markan apresentou o jovem Gilmar a um mundo novo, sem que precisasse sair de Fortaleza. Foi assim que seu entusiasmo com o terreiro da Dona Neide Pomba Gira transformou-se em texto e depois em cena em sua criação, já como experiência que, sozinha, abarcava o Ceará inteiro. Em 1974, parte do primeiro livro vira espetáculo de teatro, graças a outra de suas grandes amizades. Com direção de Marcelo Costa, Orixás do Ceará é um marco definitivo do nosso teatro, um desses raros e preciosos pontos de mudança. Em 1976, Gilmar faz aquela que seria sua segunda viagem definitiva. Vai a Juazeiro do Norte e volta ainda mais corajoso e poderoso para fazer e pensar o que queria. Em 1977, lança Parabélum, o maior romance épico do Nordeste, como bem disse Ana Miranda um dia desses.    

Parabellum é a síntese de Gilmar de Carvalho pós-Juazeiro do Norte. É quando ele faz parelha com as tradições populares. Dos muitos pioneirismos que acumulou, Gilmar introduziu um olhar carinhoso, respeitoso e novo no diálogo com o campo da tradição. Ele nunca endossou o discurso que entendia (e entende) a cultura popular como revolucionária ou resistente. Não acreditava nisso. Como também não acreditava na leitura que entendia (e entende) a cultura popular como reacionária, conservadora. Gilmar sempre foi um pensador e um criador com preocupações muito variadas.  Vibrou com os Parangolés de Hélio Oiticica. Foi um grande entusiasta do Tropicalismo. Eterno apaixonado pelo Glauber Rocha. Nunca se viu como um “folclorista”. Ele sempre defendeu e acreditou numa expressão contemporânea calcada na tradição. Seu interesse pela tradição sempre foi no sentido de, a partir desse universo, fazer surgir um contemporâneo de fato consistente, e, não, uma mera cópia de modelos importados. 

Sem querer, Gilmar se transformou numa escola. Formou e firmou um pensamento que hoje liga várias gerações. Um pensamento plural, que aproxima, com genialidade, televisão e xilogravura. O Ceará foi uma de suas maiores obsessões. Ele não mediu esforços para que o Ceará tivesse a sua visibilidade e a sua diziblidade devidamente organizadas. Briguento, como ele mesmo se definia, não fugiu ao bom debate do desafio de fazer o Ceará um tanto mais orgulhoso de si, superando a indiferença do tal do primeiro donatário que nunca pisou aqui e também a sina de errante fixada pelo menino Moacir. “Bonito pra chover: ensaios sobre a cultura cearense”, de 2003, é expoente de sua dedicação e leitura obrigatória para compreender como Gilmar organizava suas ideias. Gilmar sempre foi intenso e rigoroso em seus interesses. Tirinete: rabecas da tradição, de 2018, já de sua lavra em parceria com Francisco Sousa, esmiúça a vida de todos (literalmente, todos) os rabequeiros e as rabequeiras (sim, elas existem) que estavam escondidos e desprestigiados Ceará adentro. 

Gilmar foi sempre incansável. Mesmo depois dos 70, ele tinha e festejava planos. Muitos planos. Desde que se aposentou da Universidade Federal do Ceará, entrou numa sequência de trabalho de fazer inveja e fazer cansar a juventude dos jovens de idade. Sem dúvida alguma, tinha ainda muito a contribuir. Como respiro, deixa, porém, uma obra imponente e uma enorme rede de relações intelectuais e, sobretudo, afetivas. Gilmar não teve filhos, mas fez uma família imensa ao longo de sua trajetória. Uma família que se identifica no olhar, no gosto, num repertório de frases polêmicas, em parágrafos curtíssimos, no café, na psicanálise, em Clarice, em Patativa, no desejo imenso de produzir, no interesse pelo novo, na paixão avassaladora pela vida, enfim. Gilmar de Carvalho agora é apenas uma fotografia na parede, como dizia Drummond para falar de sua saudade. Dói, mas como dói, imaginar que amanhãs virão sem que ele esteja por aqui para anunciar esses novos tempos. Eles passarão. Gilmar, passarinho!

Magela Lima é pesquisador e crítico de teatro. Está no Instagram.

Magela Lima

Crítico e pesquisador de teatro, tem mestrado e doutorado em Artes Cênicas.