Águas de março: nem sempre uma promessa de vida
Da Beira Mar alagada em Fortaleza aos desabrigados no Acre
Rodrigo Iacovini
rodrigo@polis.org.br
Imortalizada no dueto de Elis Regina e Tom Jobim, a canção Águas de março possui um lugar especial no repertório sentimental brasileiro. A leveza da melodia esconde, no entanto, uma consequência triste das águas de março: milhares de famílias ainda hoje perdem suas casas (e até vidas) em decorrência de um processo de urbanização que não soube respeitar a natureza.
Filho de classe média, cresci sabendo pouco sobre as mazelas da população pobre do país. Passava todo dia, a caminho da escola, por uma favela, mas nunca me perguntava por que suas casas eram diferentes da minha. Em um verão chuvoso, a casa de uma amiga foi inundada e todos os seus pertences foram levados pela água. Lembro de sua tristeza e da comoção dos amigos, doando coisas, prestando solidariedade. Mesmo assim, não me lembro de questionar se aquilo acontecia a outras famílias também, e se elas recebiam o mesmo apoio e carinho.
Como as fotos da Beira Mar alagada de Fortaleza nessa semana me recordaram, foi na faculdade que descobri a realidade dura da maior parte da população, que tem seu direito à moradia negado. Tive contato com movimentos e organizações da sociedade civil de Fortaleza que buscavam mudar isso. Com o Cearah Periferia aprendi que as chuvas de verão poderiam ser um pesadelo para milhares de famílias. Em seu projeto Águas de Março, o grupo já denunciava em 2005 a situação vivida por elas e pressionava o poder público por intervenções efetivas. A exposição fotográfica do projeto me tirou a alegria de ouvir a chuva caindo no momento de dormir. Para alguns, o barulho de chuva embala o sono; para outros, é justamente o que impede de adormecer em paz.
Se é verdade que, a partir de ações públicas, a situação dessas famílias pode ser melhor que há 16 anos, ainda não chegamos à raiz do problema: o processo de urbanização excludente e irresponsável. Os moradores que ocupam áreas ambientalmente frágeis o fazem por não encontrarem alternativas, já que o estado ainda se abstém de regular a produção do espaço urbano de forma a torná-lo democrático, acessível a todos que necessitam construir sua moradia e usufruir de serviços e infraestrutura urbana. As cidades continuam sendo orientadas principalmente pela “força da grana que ergue e destrói coisas belas”, como alertou Caetano em Sampa.
Além da exclusão social, econômica e racial (sim, em sua maioria a população excluída por esse processo é negra), temos sido ambientalmente irresponsáveis. A historiadora Maíra Rosin relembrou, por exemplo, como enfrentamos hoje problemas decorrentes do desprezo aos rios na urbanização de São Paulo, a qual desde 1887 registra enchentes. Não prestamos a devida atenção a rios, chuvas e mares. Ao contrário, quisemos vencê-los e impor o predomínio da racionalidade moderna.
Houvéssemos repensado os pressupostos da urbanização, não viveríamos em 2021 tragédias como a que assola o Acre. Mais de 130 mil pessoas foram atingidas pelas enchentes no estado. Precisamos mudar o paradigma do desenvolvimento urbano brasileiro se quisermos que, um dia, as águas de março sejam de fato uma promessa de vida.
Rodrigo Faria G. Iacovini é urbanista e coordena a Escola da Cidadania do Instituto Pólis. Está no Twitter e Instagram.