Ainda vale o esforço do debate?
Desde a Grécia Antiga, o bom debate demanda o escudo da proteção racional, que tem nos faltado
Cláudio Sena
claudiohns@gmail.com
Após a volta do período de estágio doutoral em Lyon, para não perder o francês conquistado a muito custo financeiro, orelhas gastas, língua e lábios contorcidos pelos biquinhos requeridos pelo idioma, habituei-me em assistir e ouvir programas de televisão e de rádio francófonos. Algo neste produtos midiáticos é recorrente: o debate. A chinela canta, a porrada come solta, mas tudo verbalmente. No máximo, um abandono de programa. Nada costuma atingir uma escala de resultado de teste de fidelidade do Ratinho ou reação à apresentação de segredo familiar ao estilo Márcia Goldschmidt.
Nestes programas franceses também armam-se cenários para típicos confrontos de ideias. Cadeiras ladeadas, bancadas opostas ou mesas circulares. Temas como imigração, eficiência das medidas de proteção contra a Covid, perigo ou segurança das vacinas e, eventualmente, debates menos essenciais, como a vida amorosa dos famosos. Há apresentadoras e apresentadores calejados na arte da provocação e da apartação. Compreensíveis esses mediadores, já que é preciso para garantir a segurança e o nível das falas e gestos. A qualquer exagero, um “arrête!” ou “oh là là là, là…” infinito e c’est fini a confusão.
O debate parece ser necessário desde a Grécia antiquíssima. Mesmo Platão, ao que parece, teve de gastar muita saliva e sandália nas ruas de Atenas, provocando e praticando sua dialética, com perguntas nem sempre óbvias e com respostas nem sempre consensuais. Nos casos grego e francês, parece existir algo em comum: um certo afastamento das emoções. Sabe aquela coisa de levar para o lado pessoal? Pois bem, se ocorreram ou ainda ocorrem cargas emocionais e xingamentos dirigidos, houve e há esforço de controlar a boca para não soltar um: “você diz isso porque não gosta de mim”.
Na minha mente, o paralelo inevitável é traçado com o caso brasileiro. Não preciso apontar as capas de emoções que embalam nosso corpo. É difícil mantermo-nos apenas nas ideias, ainda mais quando somos confrontados com o que nos opõe. Piora quando o que nos opõe também nos oprime. O mais desafiador nesta panela de pressão que cozinha o Brasil é seguirmos a debate saudável e, ao modo sugerido pelo antropólogo, sociólogo, filósofo e, principalmente, paciente e calmo Edgar Morin, praticarmos a “ética da compreensão”. Deixo um trecho e peço que você me diga se consegue:
“A ética da compreensão é a arte de viver que nos demanda, em primeiro lugar, compreender de modo desinteressado. Demanda grande esforço, pois não pode esperar nenhuma reciprocidade: aquele que é ameaçado de morte por um fanático compreende por que o fanático quer matá-lo, sabendo que este jamais o compreenderá. Compreender o fanático que é incapaz de nos compreender é compreender as raízes, as formas e as manifestações do fanatismo humano. É compreender porque e como se odeia ou se despreza. A ética da compreensão pede que se compreenda a incompreensão.”
Mais fácil dar um block e tirar do nosso rastro aqueles perigosos aparentemente irreversíveis, à guisa do “fanático” moriniano. Nesta altura da pandemia, você já deve ter concluído que uma boa saída é afastar esses desagradáveis e cuidar da sua saúde mental. Porém, atenção. Trata-se de um paliativo estratégico a ser usado com moderação, um alerta de incêndio, antes que a cabeça pegue fogo.
Passada a tensão, temos que respirar fundo, recorrer ao escudo da proteção racional e retomar em algum momento nosso lugar na bancada. Por mais que a vontade seja de destruir o opositor, talvez valha o esforço de compreender as engrenagens do pensamento do antagonista, a fim de nos munir de armas mais eficazes que a violência, mesmo esta não sendo gratuita. Eu digo isso como sugestão para outros, mas também para tentar condicionar minha mente às vezes amargurada por tanto sentimento ruim em relação aos que, a meu ver, são perversos. Força, amigas e amigos.
Cláudio Sena é professor e publicitário.