Bemdito

Alto lá, general!

Ameaças fardadas não podem ser toleradas quando tudo que se busca é o controle da corrupção e da ilegalidade praticados por servidores com patente
POR Juliana Diniz
JEFFERSON RUDY / AGÊNCIA SENADO

Mais uma semana em que a sociedade brasileira sofre uma ameaça armada. Em entrevista ao jornal Globo publicada ontem, 9 de julho, o brigadeiro comandante da Aeronáutica Carlos Almeida Baptista Júnior reafirmou o tom da nota assinada na última quinta-feira pelo Ministro da Defesa e os comandantes das forças armadas. Na nota à imprensa, os militares do patamar mais alto da hierarquia manifestaram repúdio a declarações do senador Omar Aziz, presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, sobre atos de corrupção imputados a militares da ativa. 

Segundo os comandantes, as afirmações de Aziz são levianas e irresponsáveis, por generalizar a corrupção nas Forças Armadas. Sabemos bem que o senador não fez isso: em sessão tensa, que rendeu a prisão de Roberto Dias por falso testemunho, Aziz fez questão de ressaltar que se referia “à banda podre das forças”. Estava legitimado pelos fartos, muito fartos indícios de ilegalidade praticados por militares da ativa, com patente, incorporados na estrutura do governo.

A gravidade da nota foi sensivelmente ampliada pelo teor da entrevista concedida pelo brigadeiro Baptista Júnior ao Globo. Segundo ele, “homem armado não ameaça”, age, por isso as forças “não irão enviar 50 notas” para o presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia: “é apenas essa”. Haveria, segundo o comandante, uma base legal para ação, no sentido de evitar que a comissão leve adiante as investigações contra os militares.

O desconforto com o tom dos militares foi geral – sentido na imprensa e entre as instituições. No mesmo dia em que a nota conjunta foi publicada, Omar Aziz pediu a palavra no plenário do Senado Federal para exigir uma reação mais firme de Rodrigo Pacheco, que preside a casa. O senador mineiro, fiel a seu estilo frouxo, ensaiou contemporizar, mas acabou sendo obrigado a, após a veiculação da entrevista do brigadeiro, convocar coletiva de imprensa para reafirmar a independência do parlamento e o direito constitucional da população brasileira à proteção do regime democrático. Agiu mal, sem a ênfase necessária que pedia a ameaça desproporcional dos comandantes.

Foi uma sexta-feira intensa, confusa. Além das farpas trocadas entre senadores e militares, vimos a temperatura subir ainda mais em razão da baixaria do presidente Jair Bolsonaro, que chamou o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, de imbecil, após reiterar denúncias de fraudes que jamais foi capaz de comprovar. Barroso, que não costuma dar atenção aos destemperos de Bolsonaro, reagiu institucionalmente, através de nota publicada pelo TSE. No documento, o órgão declara ser crime comum e de responsabilidade ação para inviabilizar a regularidade do processo eleitoral no país.

O desequilíbrio dos militares tende a aumentar à medida que a comissão reúne evidências de que negociações e movimentações ilegais em contratos públicos na pasta da saúde aconteceram graças à participação de atores com farda e patente. A investigação se aproxima de nomes como os de Alex-Lial Marinho, tenente-coronel do Exército, auxiliar do ex-ministro Pazuello e Coordenador-geral de Logística e Insumos Estratégicos do ministério; o tenente-coronel Élcio Franco, Secretário Executivo do general Pazuello durante sua gestão; além de Marcelo Blanco, coronel do Exército que também desempenhou função de assessoria na pasta.

Ainda que as apurações precisem continuar para tornar mais robusto o conjunto probatório, os testemunhos e o levantamento documental que até agora já foram feitos deixam claro que a gestão militar no governo civil foi temerária, descuidada, repleta de vícios e problemas de regularidade administrativa. A ameaça do brigadeiro não é capaz de ocultar esse fato: a legalidade passou longe dos trabalhos quando os fardados comandaram os fluxos da pasta da Saúde, para prejuízo geral da nação.

O senador Omar Aziz está repleto de razão quando cobra do presidente do Senado firmeza e coragem. Uma intimidação é sempre o prenúncio de outra intimidação mais grave, como a entrevista concedida ao Globo foi capaz de demonstrar. É preciso que a sociedade civil – e suas instituições – deixem claro aos comandantes militares quem é que manda e quem serve a quem na estrutura constitucional brasileira. 

Militares também se submetem à legalidade e devem muitas contas de sua governança. Se admitirmos o contrário, acabaremos por ter de tolerar não só a ineficiência, a baixaria, a falta de decoro de certos agentes pouco talhados para o trabalho militar e civil, mas também a persistência de esquemas de corrupção que nos limitam as possibilidades de desenvolvimento nacional mesmo antes do surgimento da pandemia (e da fantasia de que todo militar é, por princípio, competente e honesto).

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.