Bemdito

Aquele que habita no esconderijo

O futuro dos jovens das comunidades sob o pêndulo do senhor da vida e da morte
POR Jamieson Simões

O futuro dos jovens das comunidades sob o pêndulo do senhor da vida e da morte

Jamieson Simões
jamrsimoes@gmail.com

Houve um tempo em que se usava o telefone para falar com outras pessoas. Havia um número que, quando me ligava, era porque a chapa estava pegando fogo nas comunidades. Aquele número me ligava com regularidade, e eu tremia e suava frio quando atendia. Era por medo. Era por amor.

Numa dessas ligações, fui informado que um grupo criminoso quebrou um acordo e estava aceitando na linha de frente meninos de 14 anos. Nos idos de 2012, isso era um absurdo, uma quebra de ética até mesmo pros padrões do mundo do crime. Peguei minha bolsa com a caderneta, caneta e a bíblia surrada e, com o Salmo 91 já gasto de tanto eu passar os dedos no papel, corri pro território.

Não tinha a menor ideia se seria recebido numa audiência pela liderança do tráfico da área. Não sabia que estratégia eu usaria pra tentar um acordo. Só uma estática na minha cabeça, alguma náusea e um zumbido nos meus ouvidos. Em cada beco que eu dobrava, respirar ficava mais difícil. Meus joelhos queriam dobrar e as pernas pareciam de borracha. Inexplicavelmente, continuava descendo pro bunker e podia não sair vivo de lá. Já conhecia aquele lugar e as lembranças de lá não eram boas, apenas me serviam de alerta e tentavam me convencer a não entrar lá de novo.

Por respeito, as armas eram escondidas das minhas vistas, arranjaram um banquinho e pediram pra que eu sentasse e aguardasse. Coloquei o banco de modo que eu ficasse de frente pra porta e de costas pra parede. Havia uma rede armada, um resto de pão num saco e, debaixo do tapete, um volume que eu deduzi com facilidade ser uma 12 e duas quadradas. Puxava o ar, mas ele não entrava pelos pulmões. O tempo parado, o calor e o medo me faziam suar.

O burburinho do lado de fora anunciava a chegada do senhor da vida e da morte. Levantei em reverência. Recebi um abraço.

– Irmão, o que você faz aqui sem ser chamado? Aconteceu alguma coisa? Alguém lhe incomodou?

– Como vai seu filho?, respondi.

Um tempo atrás “salvei” a vida dessa criança e esse era o único trunfo que eu tinha pra abusar da sorte.

– Tá se criando, pastor! Você precisa ver como ele tá bonito. Apareça lá pra tomar um café e orar por ele…

O coração enternecido pela memória do filho era a deixa pra que eu entrasse.

– Meu filho! Imagine se o seu irmão quisesse entrar pro crime aos 14 anos… Que você faria?

– Daria uma surra nele e mandava ele pro interior. Isso aqui não é vida pra ninguém, irmão. Não tive oportunidade. Você sabe o que passei e sofri. Não tenho futuro, mas ele pode ter um.

– Tenho um pedido pra lhe fazer. Considere cada menino dessa comunidade como um irmão seu. Eles crescem e precisam de uma oportunidade assim como seu irmão. Quero que você proíba o ingresso de meninos com menos de 14 anos no crime. Estou lhe pedindo como um pai, desesperado, não quero enterrar meu filho e não quero essa dor pra ninguém.

O senhor da vida e da morte foi atingido no coração. Saí do bunker sentindo que me faltava um pedaço, meio morto, meio vivo. Ninguém sai ileso dum acordo desses. Foram 4 anos que se seguiram sem o recrutamento de meninos de 14 anos naquele território para o crime. Fiquei devendo a visita ao herdeiro da vida e da morte. Mas isso já é outra história.

Jamieson Simões é um corpo-negro no mundo com toda potência que isso implica. Está no Instagram.

Jamieson Simões

Pesquisador em juventude e violência, é assessor do Comitê Cearense de Prevenção à Violência da Assembleia Legislativa e mestrando em sociologia na UFC.