Ato obsceno: o terrorismo da moral
Eu concordo com a sentença que diz que “a pornografia é o erotismo do outro”.
Os nossos desejos, fantasias e representações do sexo são sempre mais adequados e justificados do que os de todos aqueles que não reconhecem ou reproduzem essas nossas imagens e imaginações. Tudo aquilo que não se localizaria como identidade nesse espectro dos prazeres próprios seria (e deveria ser) rebaixado ou excluído de uma escala de legitimidade.
Houve muitas variações das formas e dos termos desse controle aduaneiro das projeções e ficções sexuais, como o que definia o “erótico” sendo o mais sutil e velado e o “pornográfico” aquilo mesmo feito de “excessiva exposição”, mostrando muito mais do que insinuando. (Risos).
Bem, da mesma forma que o movimento da câmera e as inscrições de palavras, ambos nos seus registros ficcionais, definir o que são sutilezas e insinuações são sempre movimentos de moralidades, e de cafonices. E como todo problema moral, é uma questão que envolve também elitismos de classe, raça e gênero.
Os critérios dos limites para estabelecer as fronteiras do “excesso” e da “vulgaridade” do sexual como representação muitas vezes serviram para produzir outras discriminações, ou mesmo fomentá-las, sustentá-las. Precisamos lembrar que alguns romances no século XIX eram processados por obscenidade apenas pelo fato de terem sido escritos por mulheres, quando elas não conseguiam manter sua identidade disfarçada com o uso de pseudônimos masculinos, o que foi muito comum nesse período, inclusive usando o nome do marido, se este fosse ficcionista. Ou sofriam aquela acusação porque narravam uma vida feminina que se imaginava numa experiência amorosa diferente da do casamento.
Mas havia também o sentido inverso. A literatura que investia como realidade indecente e vulgar comportamentos e vontades apenas por serem praticados por personagens mulheres e não brancos. Aliás, nesse caso, essas características das suas tramas eram usadas para se defender de processos por pornografia, argumentando, então nos tribunais, que pelo próprio enredo essa ou aquela figuração foi punida pelos desvios das suas escolhas. Toda luta é uma luta no e por desejos.
Nunca foi à toa uma campanha pelos chamados “bons costumes”. Não era um acontecimento lateral, superficial do ponto de vista de uma economia política. E sua continuidade (em outras versões) é uma estratégia da resistência antidemocrática. Muita coisa entra no balaio da ameaça ao pudor, principalmente em décadas formalmente republicanas e democráticas, quando fica institucionalmente um pouco complicado usar modos tradicionais de produção de hierarquias e exclusão sociais, para todas as maneiras de explorar.
Não é por acaso que esse discurso vem superposto em outros, como os que defendem Deus e a propriedade privada. Ele sempre reverbera esses outros interesses. Ele faz imiscuir uma lógica aristocrática nas pequenas horas de qualquer dia. Melhor, melhor: faz da menor existência de um gesto uma razão fascista.
A origem do mundo
Deus não está morto, infelizmente. E está cada vez mais difícil de matá-lo. Sem quase ser em outras palavras, foi isso o que a Academia Brasileira de Letras disse para a palestra de um historiador da arte quando há alguns anos impediu a projeção da pintura A origem do mundo, de Gustave Courbet, que acontecia num evento da casa de Machado de Assis (poderia dizer no templo de Edir Macedo).
Para esses portadores de fardões e xícaras feitos de racismo e misoginia, assim como suas ideias e cerimoniais, o “ultraje público ao pudor” estava na exibição do quadro, como dito no artigo 234 do Código Penal ao tratar da exposição pública de “escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno”, e não em outros aspectos da sua história.
Os patriarcas da Academia censuraram essa apresentação em nome de uma “decência pública”, que significa mesmo que eles não queriam que suas mulheres, amantes, filhas, netas, criadas, como querem fazer de todas as anteriores, pudessem ver o que só eles podem ver e falar. Ou que elas pudessem discutir a partir do conhecimento do circuito de criação e recepção desse trabalho de Courbet a sexualização da mulher para o prazer masculino e a interdição da imaginação (revolta) erótica feminina.
Essa obra foi feita, comprada, especulada, explorada por homens. E outro dia a crítica (também feita por um homem) comemorava ter descoberto a identidade da modelo desse quadro numa comparação entre os comentário do romancista francês Dumas Filho e a cor dos pelos pubianos de uma suposta mulher que teria posado para o pintor.
A melhor resposta a toda essa estética patriarcal veio em 1989 com o quadro A origem da guerra, da artista francesa Orlan, parafraseando a imagem de Courbet com um pênis ereto.
O obsceno como crime, como segue impávido até hoje na legislação brasileira, sempre serviu às tentativas de controle de homens sobre mulheres, como de ricos sobre pobres, brancos sobre negros. Precisamos pensar num uso transgressivo da “transgressão”, do que é considerado transgressivo, sobretudo nas suas definições como obsceno, ultrajante, ofensivo às “boas famílias”.
É preciso ofender as “boas famílias”, aliás. Há toda uma experiência democrática que só surge daí. Vamos pagar um preço alto por aceitarmos placidamente que a palavra divina tenha menos vergonha de se expressar no Brasil do que a palavra obscena. Sade não pode ser esquecido na bastilha. Outro dia, um riquinho oco do lucro entupido comemorava a doação de milhares de bíblias e terços para detentos do sistema penitenciário do Ceará, num evento na Federação das Indústrias do estado. Nessa cerimônia macabra, esse vagabundo e seus irmãos de fé nos ensinavam o que significa defender Deus, a família e a propriedade privada: algumas “máquinas de calcular nas portas do Inferno”.