Bemdito

Balança, mas não cai

Uma história de desocupações e animalização de indesejados
POR Victor Hugo Siqueira
Ocupação de prédio no bairro de Santo Cristo, no Rio, por entidades que lutam por moradia (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

A faca que minutos antes servira para cortar a pedra destinada ao cachimbo perfurou o peito de Raimundo em um golpe tão certeiro quanto infeliz. Naquela noite, sete disputavam cinco cestas básicas ofertadas para serenar a consciência de um empresário antes da ceia natalina. De mãos vazias e com o crack na mente, Raimundo se atracou com Francisco, golpeando-lhe a cabeça enquanto segurava o papel celofane que envolvia a oferenda como se sua sobrevivência dependesse daquilo. Lamentavelmente, tinha razão.

Este triste episódio chegou ao meu conhecimento através das cópias descoloridas de um processo judicial. Francisco seria julgado no plenário do Tribunal do Júri e eu seria o encarregado de sua defesa. A única pessoa a testemunhar o ocorrido foi Socorro, companheira de Raimundo, que estava grávida de seis meses na época dos fatos. Ocupada por gente e por química, não foi apenas de Raimundo que se despediu no fim daquele ano.

Ocupado também era o espaço onde viviam. Companheiros de invasão, Socorro, Raimundo e Francisco faziam do “Balança, mas não cai” um refúgio. O prédio abandonado abrigava cerca de quarenta famílias em situação de extrema vulnerabilidade, reflexo da desigualdade social e da falta de políticas públicas que enfrentem a questão do déficit habitacional com estratégias que não se resumam a canetadas acompanhadas de balas e tratores.

Essa conjuntura me remeteu ao romance A ocupação, de Julián Fuks. O livro foi concebido após o autor participar de uma residência artística no antigo Hotel Cambridge em São Paulo. O local é hoje ocupado pelo Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) e a obra busca dar voz a diversos moradores e a suas lutas por uma existência digna. Uma dessas pessoas é Rosa.

Rosa morava com o marido em Aragominas/TO. Numa manhã, após quinze anos de convivência turbulenta, ele se levantou, juntou suas roupas e foi embora com outra mulher, deixando para trás a esposa e uma infestação de ratos no forro de PVC da casa em que viviam. Decidida a eliminar os roedores que ficaram, Rosa convocou uma empresa para dar cabo do extermínio. O veneno foi ministrado e os ratos passaram a morrer rapidamente. 

Dias depois, o silêncio que invadiu a casa dava a entender que finalmente teria uma noite tranquila. Todavia, Rosa teria negado até mesmo o direito a um sono sem sobressaltos. Acordou no meio da noite com uma gosma fedorenta escorrendo pelo seu rosto. Ao acender a luz, percebeu que larvas caíam do teto através do soquete da lâmpada. O exército de vermes devorava os ratos que jaziam no forro. Ao perceber que uma nova infestação tomava conta de sua morada, Rosa tomou a decisão que já devia martelar sua cabeça há bastante tempo: partiu.

Como foi parar na ocupação do Hotel Cambridge, Rosa não sabe dizer. A necessidade de sair era mais forte do que a consciência de onde queria chegar. “Minha vida era um vazio, feita só do que já não existia. Foi a Carmen quem me tirou da rua naquelas primeiras noites duras de São Paulo, foi a luta quem me tirou de dentro de mim aquela mulher morta. O caso é que eu cansei de ser ocupada, por homem, por rato, por larva. Agora é a minha vez de ocupar, você não acha?” Tenho certeza de que Socorro concordaria.

Quanto a Raimundo e Francisco, poderiam muito bem estar em polos trocados na ação judicial. Ambos são vítimas e algozes. Raimundo, desgraçadamente, teve suas funções vitais encerradas naquela noite de Natal. Por sua vez, apesar das tentativas, não tive oportunidade de conhecer Francisco. Após sua prisão em flagrante, ele permaneceu em prisão cautelar por tanto tempo que acabou solto por excesso de prazo na conclusão da instrução processual antes que eu assumisse sua causa. Com a demolição do prédio que servia de morada, as notícias que correram pelas ruas é de que virou andarilho, quem sabe à espera de um fim semelhante ao do amigo.

Talvez nunca venha sequer a ter conhecimento de que os jurados o absolveram após algumas horas de julgamento. Devo confessar, não sem tristeza, que defender uma cadeira vazia em plenário às vezes é menos desafiador do que convencer alguém a enxergar além da sub-humanidade das vestes laranjas da penitenciária, da barba e cabelos desgrenhados, dos dentes que faltam, da ausência de tato. Em um mundo no qual a despersonalização dos considerados indesejados se torna cada vez mais comum, a animalização mais choca do que sensibiliza.

Victor Hugo Siqueira

Defensor público e escritor. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, desenvolve pesquisas sobre o acesso à justiça de populações vulneráveis e história da escravidão.