Bemdito

Coentro, salsinha, xenofobia e racismo

Como uma folhinha verdinha explica as tensões regionais do Brasil
POR Marcos Nogueira

Como uma folhinha verdinha explica as tensões regionais do Brasil

Marcos Nogueira
contato@cozinhabruta.com

Coentro, aqui onde eu moro, é quase palavrão.

Nenhuma outra comida desperta tantas paixões nos brasileiros. Quem gosta ama loucamente; quem não gosta detesta com todas as forças. E é só uma folhinha verdinha, inofensiva, frágil. Que diabos se passa com o coentro?

É uma questão regional.

Se você tiver tempo para perder na internet, visite um perfil do Instagram chamado Terrible Maps (“Mapas Terríveis”), que subverte a cartografia de modo engraçado e instigante. Lá há, por exemplo, um mapa que divide a Europa em tomate e batata. Os países-tomate estão no Sul: Itália, Espanha, Portugal, Grécia, Bálcãs, Turquia e metade da França. A outra metade francesa se une à Inglaterra, escandinavos, germânicos e eslavos na Europa-batata. Divisão semelhante pode ser feita com cerveja e vinho, azeite e manteiga, café e chá.

Analogamente, existem o Brasil-coentro e o Brasil-salsinha. Uma linha imaginária separa Norte e Nordeste coentreiros do território salsista composto por Centro-Oeste, Sul e Sudeste. Nessa geografia cheiro-verdista, o Espírito Santo foi anexado pelo Nordeste – o capixaba é um dos mais aguerridos defensores do coentro em moquecas, moquequinhas e frigideiras.

Desconfio que a dicotomia salsinha-coentro vá para além da predileção pessoal por esta ou aquela erva. Ela contrapõe identidades culturais e, examinada com uma boa lupa, revela traços de racismo e xenofobia.

Não posso falar por todo o país salsista, mas carrego nas costas meio século de São Paulo, cidade onde nasci e passei quase toda a vida. Nossa relação com as gentes nordestinas é uma ferida aberta. Está melhorando. Devagar, bem devagar.

Faz pouco tempo que as culinárias do Nordeste começaram a ser assimiladas pelo paulistano.

Tapioca ficou pop. O cuscuz de milho ainda não emplacou, mas é cultuado por certa vanguarda gastronômica. Carne-de-sol, macaxeira e baião-de-dois estão quase no mainstream da comida de boteco.

Hoje a cidade oferece até opções bastante específicas, como um restaurante de comida da Chapada Diamantina (a Casa de Ieda) e outro do Sertão do Seridó (o Jesuíno Brilhante), que ignora a divisa estadual entre Paraíba e Rio Grande do Norte.

Mas o coentro ainda gera desconfiança. Aclimatada, a comida nordestina em São Paulo costuma pegar leve no coentro, quando não o omite. O Ritz, restaurante da elite cultural há três décadas, oferece a escolha entre salsinha e coentro para quem pede a moqueca dos domingos – que é servida com arroz basmati, de origem indiana. O paladar do paulistano aceita o exótico, desde que bem remoto.

Muito propalado pelos cultores da coentrofobia é um estudo de 2012 que identifica um gene responsável pelo gosto de sabão que algumas pessoas sentem no coentro. Os próprios autores da pesquisa, porém, admitem que apenas 10% dos casos de rejeição ao coentro vêm dessa variante genética.

O restante corresponde à má vontade em se acostumar com sabores pouco familiares. Chame de jequice, se quiser.

Em São Paulo, é normal não encontrar coentro para comprar. Dia desses, vi um cliente inglês, frustrado pela falta da erva, no supermercado em frente à minha casa.

A Inglaterra, que tem uma culinária bastante precária nos temperos aromáticos, caiu de amores pelo coentro da comida indiana. A mesma coisa com os americanos e a cozinha mexicana. São casos de dominação e aculturação que encontram paralelo na relação entre o Sudeste e o Nordeste do Brasil.

São Paulo, toda metida a cosmopolita, precisa digerir o próprio provincianismo antes de abraçar o coentro nordestino.

Marcos Nogueira é jornalista especializado em gastronomia. Pode ser encontrado no Cozinha Bruta, no Twitter e no Instagram.

Marcos Nogueira

Jornalista, assina a coluna Cozinha Bruta, uma das mais lidas da Folha de S. Paulo, desde 2008.