Bemdito

Colcha de retalhos

Sobre como o fim de um relacionamento nos ensina que o "eu" é feito de muitos outros
POR Carolina Mousquer Lima
Henri de Toulouse-Lautrec

Quando um relacionamento acaba as horas vagas e as tarefas rotineiras costumam ser a parte mais angustiante do dia. É como se perdêssemos as referências. Onde coloco meu corpo nessa casa? O que vou comprar no super? O que eu gosto de fazer no final de semana?

Escrevo  a partir de uma ideia que vi circular nas redes sociais de que esses seriam sinais de um relacionamento que foi tóxico, pois a pessoa “se anulou”, “esqueceu de si mesma”. 

É possível que seja. Mas é importante pensarmos a respeito da premissa de que há um “si mesmo” que não pode ser abandonado ao nos relacionarmos. Afinal, se for para continuar sendo “você mesmo”, de que vale um encontro com o outro? Qualquer relacionamento que vale viver não é sempre uma espécie de mistura?

A sabedoria popular sempre nos lembrou disso. “Me diga com quem andas e te direi quem és”. É preciso escolher bem os encontros, pois nos tornamos o outro, em certa medida. Não convivemos com as pessoas sem nos desfazermos, pelo menos um pouco, de quem somos.  Chego a pensar que só podemos chamar de encontro se algo de nós restar na pessoa e vice-versa. E essa parte, por mais que a gente queira calcular o que se dá e o que se recebe, não cabe na aritmética. Encontro rico é aquele em que a gente ganha ao perder e não o do “toma lá, dá cá”. Deixemos a matemática para quem faz networking. Amizade e amor são outra coisa.

Então, se somos como uma colcha de retalhos, esse “si mesmo”  que pensamos abandonar existiria apenas como uma miragem, como ilusão de totalidade. Pode ser angustiante pensar que essa imagem total é tão cambaleante e corre o risco de se quebrar.   

Há momentos na vida em que a gente precisa juntar esses cacos e a colagem nunca fica igual. E isso pode ser bom, pois vamos ganhando versões. Não estou falando da sua “melhor versão”, como se fosse algo que podemos ao nosso critério moldar. Somos versões construídas de formato variável, sucessivas, mudando ao sabor dos encontros e desencontros. Eles acontecem à nossa revelia, pois ninguém escolhe deliberadamente perder-se no outro, nem muito menos desfazer-se em pedaços sucessivas vezes.

Se acontecer, recomendo colar com tenaz e não com super bonder. Quem se quebra mais facilmente, também se cola com menos cerimônias.

Carolina Mousquer Lima

Carolina Mousquer Lima é psicanalista, especialista em Psicanálise e mestre em Psicologia Social pela UFRGS.