Da guerra à preservação: a evolução tecnológica dos drones
Em alguns círculos, falar mal de tecnologia virou moda. É cool apontar os problemas que certas evoluções tecnológicas causam às pessoas e à sociedade. Eu mesmo já caí nesta tentação fácil por aqui. Mas como parte da beleza do mundo está nos contrastes de pontos de vista, nossa conversa hoje gira em torno das coisas boas que uma tecnologia em especial, a dos drones, vem nos trazendo discreta e silenciosamente.
Uma das primeiras notícias que se têm de um dispositivo de voo que não necessitava de um ser humano no controle vem de antes da invenção do avião. Reza a lenda que o primeiro drone foi usado na tentativa de tomada da cidade de Veneza por forças austríacas no verão de 1849. Na ocasião, o comandante Franz von Uchatius usou algumas de suas invenções, balões que carregavam bombas incendiárias, a partir de um navio ancorado na costa da cidade italiana. O ataque não deu muito certo. Apenas uma bomba atingiu o alvo, sendo que várias outras caíram sobre o próprio navio-lançador por conta de uma mudança nos ventos. Uchatius só não entrou para a história como um total militar fracassado porque suas invenções civis acabaram tendo maior importância. É a ele, por exemplo, que devemos a existência dos projetores de cinema. Mas essa é outra história.
O fato é que os dispositivos de voo não tripulados — o nome técnico dos drones — tiveram mesmo muita relevância militar. Alguns tipos bem rudimentares de mísseis foram inventados pelos americanos durante a Primeira Guerra Mundial. Nesta época, ao contrário dos tempos de Uchatios, os engenheiros militares já conseguiam evitar auto-bombardeio. Com isso, no período entre guerras, vários outros países passaram a desenvolver dispositivos de voo autocontrolados que serviam como alvos móveis para treinamento de artilharias antiaéreas.
Pouco depois, já durante a Segunda Guerra, os alemães projetaram e construíram diversas categorias de drone, o mais famoso deles o V-1, uma espécie de míssil teleguiado que fazia um barulho característico de inseto ou “assobio” quando estava se dirigindo ao alvo, usado muitas vezes para bombardear Londres.
Mas se a ideia era falar bem dos drones, por que focar no passado de destruição e mortes que eles causaram? Bom, a exemplo de outras tecnologias que surgiram no contexto militar, como a Internet e o GPS, os drones tiveram um passado sombrio, mas foram adaptados para usos mais promissores do que apenas aniquilar alvos militares e vidas humanas.
Nem tudo é sombrio
Inovar é o processo criativo de misturar ideias já existentes. Enquanto os projetistas pensavam em como fazer algo que voa explodir algo em terra, muita gente vinha tentando combinar ideais tomando por base dispositivos voadores, mas com objetivos totalmente diferentes. Ainda em 1858, só nove anos após o fiasco de Franz von Uchatius em Veneza, um francês de nome composto e apelido curto, monsieur Gaspard-Félix Tournachon, também conhecido como Nadar, começou a tirar fotos aéreas de Paris acoplando uma câmera simples a um balão. Depois disso, a fotografia — e a ciência — nunca mais foram as mesmas.
Dois anos depois a ideia cruzou o Atlântico e o fotógrafo americano James Wallace Black tentava o mesmo em Boston. Com o tempo, vários fotógrafos-inventores se debruçaram sobre o problema de melhorar os dispositivos de voo e as câmeras que eles carregavam. Na Europa, Arthur Batut fotografou o sul da França usando pipas e câmeras mais leves que tiravam fotos automaticamente, enquanto o alemão Julius Neubronner desenvolvia câmeras que podiam ser vestidas por pombos e tiravam fotos através de temporizadores.
Já nos Estados Unidos, George R. Lawrence usou das técnicas de fotografia feitas em balões e pipas para documentar o estrago causado em São Francisco depois de um terremoto de grandes proporções em 1906. As fotos de Lawrence são famosas até hoje a ajudaram a dar ao mundo a visão do que um evento sísmico intenso pode causar em ambientes urbanos densamente povoados.
Mais recentemente, pesquisadores passaram a usar drones para diversos tipos de pesquisas no campo das ciências naturais. Alguns exemplos interessantes incluem a exploração do da cratera de Marum. O local é a boca de um vulcão no arquipélago de Vanuatu, na Oceania, com 12 km de diâmetro. Os pesquisadores conseguiram montar um modelo 3D da cratera e coletar dados que permitiram analisar as condições em que é possível haver vida mesmo a altíssimas temperaturas.
Também no campo das atividades vulcânicas, enquanto escrevo este artigo, vários cientistas espanhóis se debruçam sobre os efeitos biológicos e geológicos causados pela recente erupção em Cumbre Vieja, na ilha de Las Palmas. O mapeamento do trajeto da lava, os esforços de evacuação das pessoas que moram no local e a avaliação dos danos físicos na ilha tiveram forte influência das imagens capturadas por drones.
Um número crescente de pesquisadores vêm estudando situações em que imagens de drones são mais adequadas que imagens de satélite. E não faltam exemplos para ilustrar esta tendência. De análise de recuperação de vegetação e ecossistemas à preservação de espécies animais em ambientes de difícil acesso para o ser humano. O documentário Sea Lions: Life by a Whisker ilustra várias dessas aplicações através do acompanhamento de uma comunidade de leões marinhos na costa da Austrália.
Um outro ramo que vem se beneficiando muitíssimo dos drones é a preservação cultural, especialmente a arquitetura. Há vários projetos em execução de restauração de castelos e outros prédios do patrimônio histórico em regiões de difícil acesso na Europa. Os drones são ferramenta fundamental para análise de materiais e formas, principalmente em encostas e elevados, locais onde castelos e outras fortificações eram construídas justamente pela dificuldade em acessá-las e atacá-las.
É irônico que uma tecnologia pensada inicialmente para destruir venha demonstrando tantos usos de preservação e proteção da vida e da arte. Da tentativa de invasão frustrada em 1849, passando pelas duas grandes guerras, decidimos usar a tecnologia dos drones para algo mais digno e mais bonito. Esta trajetória é um excelente lembrete para nós: o problema não é o avanço tecnológico em si, mas o uso que nós, humanos, damos à tecnologia. Portanto, antes de cair no já quase lugar-comum de criticar a evolução científica, talvez faça mais sentido olharmos para nós mesmos.