Delicadeza, atributo negligenciado das cidades
A felicidade de um colunista reside, algumas vezes, em poder comentar boas notícias. No meu caso, que me dedico ao direito à cidade em meio a uma sociedade desigual e injusta, são raros e preciosos esses momentos. O infortúnio de possuir comorbidades me conferiu o privilégio de ser vacinado na quarta-feira passada. Mais do que a tão esperada vacina, que levou já milhares de brasileiros às lágrimas, nesse dia o que me comoveu foi a delicadeza urbana que encontrei.
Fui vacinado em uma unidade do Sistema Único de Saúde (SUS), aqui no centro de São Paulo, cujo esquema de atendimento se localiza em uma ampla galeria subterrânea, situada no subsolo da Praça do Patriarca. Embora não estivéssemos propriamente ao ar livre, a generosidade da arquitetura do espaço nos tranquilizava como se estivéssemos na própria praça. Pela primeira vez, em um ano, não senti a necessidade de prender a respiração quando alguém passava a menos de 10 metros de mim, como venho fazendo, inconscientemente, em ambientes fechados, desde março de 2020.
Ao contrário, respirava fundo o ar fresco filtrado pela minha máscara N95/PFF2 e absorvia todos os elementos daquela atmosfera leve e arejada. Desfrutava da expectativa aliviada daqueles que finalmente poderiam receber a sonhada e escassa imunização e, principalmente, da presença delicada de um duo de violino e violoncelo que aconchegava a espera. Música e expectativa fluíam juntas através da farta circulação de ar possibilitada pelo projeto da galeria.
As duas musicistas nos conduziam naquela fila de espera. Não verificavam documentos e atestados como as enfermeiras, mas nos demandavam através dos acordes que conferíssemos nossos sentimentos. O repertório delas, selecionado a dedo pelo conforto que nos traria e que passeava entre trilhas sonoras de novelas e peças clássicas, conseguiu me fazer esquecer por 30 minutos o horror que vivemos no Brasil. Fui outra pessoa naquela meia hora.
Era exatamente esse tipo de situação que tinha em mente ao escrever a introdução da playlist Bemditas Cidades #1: que os sons da cidade não são apenas buzinas, motores e máquinas. Queria evocar o músico que toca na estação ou no vagão do metrô no regresso modorrento e apinhado das seis da tarde. Aquele som que nos transporta para muito além do quente, desconfortável e monótono espaço físico que ocupamos. Isto é, quando a cidade permite que a música ocupe este espaço – ou seja, quando ela SE permite.
Políticas e práticas urbanas de delicadeza vêm e vão, submetidas muitas vezes ao gosto do gestor da ocasião. A gentileza do Profeta já foi apagada dos muros do Rio de Janeiro. E renasceu. Os grafites de São Paulo também já foram apagados. No entanto, igualmente persistiram. Como canta Jorge Ben, “deu no New York Times”: os grafites da cidade enfrentaram as medidas arbitrárias e restritivas da gestão Doria e continuam a se disseminar com força. Good for the Soul, sintetizou o jornal no título da matéria. E são mesmo bons para a alma, como testemunha a coluna de Kelly Fernandes na UOL.
É verdade que, em alguns casos, têm feito parte de jogadas de marketing urbano atrelado à promoção imobiliária, mas a potência do grafite como arte urbana segue viva nos murais que trazem a contestação como atributo da beleza. Está naquelas expressões artísticas que embelezam, ao fortalecer memórias e identidades usualmente invisibilizadas, e ao fomentar a imaginação de novos futuros. Está na delicadeza de reconhecer, acolher e apoiar.
Apesar de a cidade – por decisões arrogantes de governantes que acreditam deter respostas que apenas à coletividade pertencem – tentar negar lugar à delicadeza, ela própria acaba encontrando brechas para resistir e se reinventar. A ação direta de moradores e artistas que recriam a gentileza e a beleza nos espaços urbanos reivindica: o direito à cidade é também o direito à delicadeza. Não nos esqueçamos disso, pois reside nessa delicadeza o poder de transformar as cidades em nossa casa.