Bemdito

Descansou a Compadecida

Morreu no Recife, aos 90, a atriz Socorro Rapôso, primeira intérprete da personagem-título do famoso auto de Ariano Suassuna
POR Magela Lima
Foto: Jorge Clesio

Nascida em 24 de junho de 1931, em Sousa, na Paraíba, Dona Socorro Rapôso se apernambucou foi cedo. Ainda criança, já vivendo no município de Pesqueira, inicia-se no teatro. Aos 25, um tanto de supetão, estreia profissionalmente. Prevista para 4 de setembro de 1956, a primeira apresentação de o Auto da Compadecida teve que ser adiada em uma semana.

O Teatro Adolescente do Recife, no entanto, tinha pressa. Então, só se falava do Festival de Amadores que Dulcina de Moraes ia organizar no Rio de Janeiro. Era a primeira iniciativa de um evento do gênero no país e o conjunto pernambucano sabia que, caso fosse selecionado, nunca jamais voltaria o mesmo para casa.

Fato é que, a dois dias de encontrar o público, de enfim chegar ao palco do Teatro Santa Isabel, aquela primeira montagem da peça de Ariano Suassuna, dirigida por Clênio Wanderley, não tinha ainda quem sustentasse o papel principal. A princípio, Miriam Nunes seria a protagonista, mas uma agenda do Teatro de Amadores de Pernambuco inviabiliza a participação.

A atriz Nina Elva, que depois passa a assinar Ilva Niño, chega a ser anunciada como a Compadecida, mas a fluência natural para a comédia acaba por lhe aproximar definitivamente da Mulher do Padeiro, personagem com o qual faz história. Assim, em meio a uma mudança apressada de elenco, é que Maria do Socorro Rapôso surge nos créditos do espetáculo, que reunia ainda Mozart Batista, Ricardo Gomes, Sandoval Cavalcanti, Eutrópio Gonçalves, Múcio Scevola, José Pimentel, Alberique Farias, Luiz Mendonça, Octávio Catanho, Artur Rodrigues e José Gonçalves.

Ali, o Auto da Compadecida já não era propriamente um texto desconhecido. Ariano Suassuna escreve a peça em 1955. Em maio de 1956, diga-se, um recorte da dramaturgia já havia sido encenado. Ariano era professor do tradicionalíssimo Ginásio Pernambucano e tenta montar o espetáculo, mas finda optando por apresentar uma adaptação com o título de O processo do Cristo negro. São os egressos daquela atividade escolar que provocam Clênio Wanderley, talento em evidência na cena de Recife e em outras grandes cidades da região, para trabalhar a versão completa com o Teatro Adolescente do Recife. Clênio abraça o projeto e arregimenta uma série de artistas iniciantes que mudariam de vez a história do teatro pernambucano.

É via Clênio Wanderley que Socorro Rapôso chega ao elenco. É também Clênio quem atrai para o Teatro Adolescente alguns integrantes do ainda mais amador Grupo Dramático Paroquial de Água Fria, como Octávio Catanho e José Pimentel. Recuperar a formação do elenco original de o Auto da Compadecida é encontrar não só uma geração teatral tomando corpo como também um pensamento teatral se fixando. Não fosse as brincadeiras de criança, Socorro Rapôso, naquele momento, seria totalmente inexperiente nos palcos. Catanho e Pimentel, mais tortuosamente ainda, entram em cena pelo esporte. Os dois eram fisiculturistas e foram parar no teatro como soldados romanos nas encenações de Paixão de Cristo. 

É esse o perfil do elenco que vai sustentar um dos mais importantes marcos do projeto de teatro moderno no Brasil. Com o Auto da Compadecida, Ariano Suassuna se firma como autor de referência no panorama do teatro nacional. O Auto da Compadecida coroa boa parte das ideias instauradas pelo Teatro do Estudante de Pernambuco, primeiro grupo ao qual Ariano se associa, ainda na década de 1940. Prova disso é que, apesar de todos os elogios conferidos à encenação propriamente dita, o que sobressai é o texto em si e, consequentemente, a dramaturgia de Ariano Suassuna. Mais que a cena, o propósito de valorização do autor e dos temas brasileiros, nordestinos, acaba se impondo. Muito embora Clênio Wanderley saia consagrado do Rio de Janeiro – além do primeiro lugar no Festival de Amadores por o Auto da Compadecida, ele também ficou com o prêmio de segundo colocado, pela direção de A grande estiagem, do pernambucano Isaac Gondim Filho, para a Federação Baiana dos Teatros de Amadores – é Ariano Suassuna e sua obra que ocupam o lugar de destaque. O Auto da Compadecida dá a Ariano Suassuna a dimensão nacional que, até então, ele e sua obra não envergavam. 

Ariano faz um estrondoso sucesso como autor de teatro, a partir de 1957, escrevendo num ritmo acelerado e sendo encenado por grupos importantes em São Paulo e no Rio de Janeiro. O festival de Dulcina de Moraes acontece em janeiro e o Auto da Compadecida ganha uma primeira adaptação em São Paulo já em março de 1957, com Hermilo Borba Filho, que lá havia se fixado desde 1953, após a extinção do Teatro do Estudante de Pernambuco, dirigindo o Studio Teatral Nelson Duarte.

Em julho daquele ano, o texto de Ariano Suassuna é publicado em livro pela Editora Agir. Em janeiro de 1958, o Teatro Adolescente do Recife inaugura, com temporada de o Auto da Compadecida, o Teatro Independência, em Santos, no litoral de São Paulo. Em junho, cumpre temporada no Theatro Santa Roza, em João Pessoa, na Paraíba. A peça encerra aquele ano com duas novas montagens estreando quase que ao mesmo tempo em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro.

Em novembro, o Grêmio Literário Tristão de Athayde encena versão de o Auto da Compadecida com direção de João Etienne Filho na capital mineira, seguindo depois para Ouro Preto. Em dezembro seguinte, novamente com direção de Clênio Wanderley, a peça é montada no Rio de Janeiro, a pedido de Dulcina de Moraes, ficando em cartaz por 11 meses consecutivos e promovendo mais de 470 apresentações.

Então, o ator José Gonçalves foi convidado a interpretar novamente o papel de Jesus Cristo, enquanto Clênio Wanderley seguia como Chicó. Em março de 1959, o Auto da Compadecida chega aos palcos do interior pernambucano em versão do Teatro de Amadores de Caruaru, com direção de Luiz Mendonça, também egresso do Teatro Adolescente do Recife. Em maio, Martim Gonçalves monta o texto em Salvador, abrindo o ano letivo da Escola de Teatro da Bahia, em atividade desde 1956.

Em outubro, o texto ganha adaptação do recém-criado Teatro Cacilda Becker e faz apresentações no Teatro Santa Isabel, no Recife, para, em seguida, fazer sua estreia internacional, no Teatro Tivoli, de Lisboa, em Portugal. O pernambucano Octávio Catanho, o Severino de Aracaju da estreia de o Auto da Compadecida em 1956, segue no papel na encenação de 1959.

É em meio à projeção de o Auto da Compadecida que Ariano Suassuna vai escrever ainda os textos de O casamento suspeitoso, que a companhia capitaneada pelos atores Nydia Lícia e Sérgio Cardoso estreia, com direção novamente de Hermilo Borba Filho, em janeiro de 1958, em São Paulo; e O santo e a porca, peça que Cacilda Becker vai apresentar no Rio de Janeiro a partir de março daquele mesmo ano com direção de Ziembinski.

No Recife, todo esse movimento vai contribuir decisivamente para organizar o teatro de Ariano Suassuna como uma poética de referência. Depois de um período radicada em Belo Horizonte, Minas Gerais, Dona Socorro Rapôso volta ao Recife e funda, em 1985, a Dramart Produções. Em 1993, inaugura o Espaço Cultural Inácia Rapôso Meia. Com essas iniciativas, ela, a seu modo, arremata o ciclo de 30 anos antes.

A Dramart Produções vai encenar, por duas décadas ininterruptas, o Auto da Compadecida, com a atriz sempre no papel-título e uma legião de novos artistas ano a ano sendo apresentados ao público da capital pernambucana. Em seus 65 anos de vida cênica, a Nossa Senhora de Ariano Suassuna foi muitas. No Recife, porém, ela segue única e atende por Socorro Rapôso.  

Magela Lima

Crítico e pesquisador de teatro, tem mestrado e doutorado em Artes Cênicas.