Bemdito

Duvide do que te define

Somos dotados de uma metafísica individual e complexa, por isso a vida não pode ser resumida em poucas palavras
POR Cláudio Sena
Foto: Felipe Yarzon

Há que se manter um pé atrás com aforismos, ditos populares, chavões, citações abreviadas, esses pequenos conjuntos de palavras, às vezes, de grandes efeitos. Seria de ingenuidade extrema ou esperteza maliciosa pensar que uma orientação ou uma conclusão advindas de um pequeno texto funcionem para a mãe de três filhos com dois empregos e para o jovem startupper herdeiro de casta altíssima.

Desde já, excluo da linha de reflexão do texto desta semana aqueles livros sagrados, carregados de fé e dogmas que dão conta de todos os mistérios do mundo. Reconheço os efeitos da Bíblia, Torá Alcorão, Bhagavad Gita, entre tantos, mas aqui me concentro naqueles que nascem da sabedoria desprovida de aura religiosa. O leitor vai já entender. 

Trato das frases que saem das bocas daqueles que se apresentam como especialistas ou dos posts potencialmente virais que ganham força na identificação do leitor com o conteúdo lido. Fórmulas mágicas, maneiras de agir, propostas de superação que anunciam, preferencialmente, a vitória. Em verdade, pessoalmente, creio que se o efeito é positivo, sobretudo a curto prazo, sem ofender ao próximo ou ao longínquo, tais pensamentos de fácil digestão mental têm sua importância. Mas me encuco justamente quando isso não ocorre ou quando há um certo deslocamento proposital do contexto histórico e social de tais reflexões.  

Lá para 1500 e alguma coisa, entre Londres e os cafundós da Inglaterra, William Shakespeare emenda: “É mais fácil obter o que se deseja com um sorriso do que à ponta da espada”. Mas será? Sem tomar armas, à base dos brilhos dos dentes, a roda da história teria feito sua volta?

Lembro que a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, bem como o direito à greve no Brasil via Constituição Federal de 1988, foram precedidos de poucos sinais de simpatia. Em tempos de redes sociais e aprovações a partir de likes e views, o pensamento “a suprema felicidade da vida é ter a convicção de que somos amados”, de Victor Hugo, se levado ao pé da letra, faria qualquer vaidoso padecer diante de poucas reações.

Versatilidade do conhecimento

Se partirmos aos orientadores de alma, de carreira, de amores, teremos gente, a partir dos mínimos textos, ensinando desde como namorar a bater massa de bolo. E para isso, tome a associar-se a Sêneca, a Aristóteles, Cora Coralina, Walt Disney, Charles Spencer Chaplin, Marie Curie e tantos outros e outras que não podem levantar para reivindicar malversação ou inadequação de seus pensamentos, mais ou menos como fez Marshall McLuhan em Noivo neurótico, noiva nervosa, de Woody Allen. 

Pela simplicidade, pelo fácil entendimento ou pela esperança de superação e de melhoria na vida, essas frases ou os conjuntos delas ultrapassam a Internet, repetem-se como mantra em entrevistas, palestras e em demais situações do cotidiano, geralmente atribuindo ao orador um certo grau de sabedoria mundana. Mas há resistências. Lembro-me do meu amigo Felipe Yarzon, que saiu sapecando à sua maneira – stencil e adesivo – uma afronta às promessas: “duvido”. 

Inspirações para movermos nossa mente e nosso corpo neste mundo confuso podem aparecer. Podem também ser buscadas ou oferecidas em todos os lugares e, claro, nestes pequenos textos. Porém, diante da complexidade de cada indivíduo e das histórias de vida de cada um – dificilmente iguais -, há também a capacidade de que, a partir de uma certa emancipação, o pensamento fraseológico possa emergir a partir de uma fórmula própria e única, uma metafísica individual. Aquele que, mesmo sem passar pelo cânone universitário ou pela popularidade efêmera, chega, por vias próprias, àquele pedaço de texto que o define e que o orienta da melhor maneira, em vez de procurar as fórmulas consagradas. Creio que essa seja a maneira mais libertadora, mas também a mais difícil, de nos definir. 

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.