E lá vamos nós vaiar o sol mais uma vez
O teatro de Gilmar de Carvalho é uma experiência que se organiza de forma coletiva. É, por excelência, um teatro de grupo. Ele escreve, inicialmente, para a Cooperativa de Teatro e Artes, coletivo que ajuda a fundar em 1972, e, na sequência, escreve para o Grupo Balaio, conjunto quatro anos mais novo, do qual também ele faz parte do processo de fundação. Desse percurso, nasceram: “Orixás do Ceará” (1974), “O dia em que vaiaram o sol na Praça do Ferreira” (1982), “Vice&Versa” (1984) e “Leste-Oeste Side Story” (1986). No último dia 28 de agosto, em programação especial do Cineteatro São Luiz, Andréia Pires reavivou parte dessa obra.
Com Larissa Goes, Sol Moufer, Gyl Giffony e Felipe de Paula no elenco, além dos músicos Tiago Nogueira, Pedro Madeira e Michael Rodriguez, “O dia em que vaiaram o sol na Praça do Ferreira” voltou à cena, depois de quase 40 anos. Embora ainda pensado e realizado nos limites da circulação online, embora parte de um projeto de natureza absolutamente excepcional, num limite de tempo de produção escasso, a leitura de Andréia Pires da dramaturgia de Gilmar de Carvalho, uma dramaturgia quase desconhecida, é uma festa.
Teatro é uma arte temporal, uma experiência de sentir o tempo. Com isso, ver “O dia em que vaiaram o sol na Praça do Ferreira” de 2021, em grande medida, é ver “O dia em que vaiaram o sol na Praça do Ferreira” de 1982. Diz muito da nossa cena, por exemplo, o fato de praticamente todo o elenco e a equipe técnica volumosa da montagem do Grupo Balaio, 19 artistas ao todo, não mais seguir fazendo teatro e, pior ainda, passar quase que em total anonimato pelas gerações mais novas. Não à toa, Marcelo Costa, que dirigiu todas as primeiras montagens das peças de Gilmar de Carvalho, diz que o teatro cearense é um teatro sempre em recomeço.
Pois bem: recomecemos uma vez mais. É urgente que as forças que abraçaram o encontro de Andréia Pires e Gilmar de Carvalho consigam, de algum modo, fazer o que foi pensado como homenagem especial: uma produção com vida própria, que possa entrar em cartaz e cumprir temporadas. Andréia Pires é uma explosão em cena. Na direção de espetáculos, seja de dança ou teatro, ela constrói uma camada de informação visual muito complexa. É sempre muito desafiador ver e acompanhar aquilo que é dado a ver nas suas criações. Daí, ser um desafio delicioso imaginar o arremate de sua apropriação do teatro de Gilmar de Carvalho, um teatro ainda muito próximo da literatura narrativa e do jornalismo.
Tem pouco mais de 25 minutos “O dia em que vaiaram o sol na Praça do Ferreira” feito para o Cineteatro São Luiz. Num trabalho maior, talvez até se desprendendo do registro em vídeo, Andréia Pires poderia voar ainda mais alto. As limitações de produção acabam por fazer dessa primeira releitura uma espécie de reserva. É como se cada pequeno fragmento do que foi apresentado sugerisse um desdobramento mais vigoroso. Na pressa da celebração, justa e bem-vinda, “O dia em que vaiaram o sol na Praça do Ferreira” de Andréia Pires surpreende pela performance do elenco, com quatro atores dando conta de 48 personagens, mas fica superficial no tratamento de algumas das questões em torno das quais a trama se organiza.
Gilmar de Carvalho é herdeiro de uma tradição que, desde o século XIX, com Frederico Severo, tem procurado acentuar o sotaque cearense no nosso teatro. Via de regra, essa tradição elegia modelos legitimados Brasil afora, como as burletas que depois de Severo vão demarcar a criação de Carlos Câmara, e inseria tipos e causos locais. A geração de Gilmar de Carvalho, apesar de recorrer ao elogio a um mesmo repertório, se recusa a aderir de forma imediata aos modelos importados. A turma dos anos 1970 viveu o sonho de um teatro “autenticamente nosso”, procurando fazer do Ceará um protagonista de conteúdos e, também, de formas.
Em “O dia em que vaiaram o sol na Praça do Ferreira”, Gilmar de Carvalho vai denunciar justamente a imposição desses modelos. A peça, que numa primeira camada, parece falar de carnaval, critica, na verdade, todo o processo de hierarquização e padronização de poéticas. Do mesmo modo como o carnaval de rua, a organização das nossas escolas de samba, não precisaria, para Gilmar de Carvalho, seguir exatamente a mesma estrutura do carnaval carioca, nosso teatro poderia, sim, ter uma lógica criativa própria. Foi isso que ele defendeu para a Cooperativa de Teatro e Artes e para o Balaio.
Na leitura de Andréia Pires, esse debate que confronta uma performance “natural” e uma outra “forçada” não tem tempo suficiente para se organizar. De todo modo, quando enxerta na dramaturgia trechos de músicas de Evaldo Gouveia, Lauro Maia e Descartes Gadelha para destacar um carnaval “nosso”, ela dá a entender o quão elaborada é essa engenharia de afirmar aquilo que seria (ou não) um traço da cultura cearense. Nesse sentido, a conversa de Andréia Pires e Gilmar de Carvalho pode e deve ser mais aprofundada. É preciso maturar um pouco mais as inúmeras referências do pensamento e da cena de Gilmar de Carvalho, e Andréia Pires tem plena consciência e pleno desejo disso.
Quando escreve “O dia em que vaiaram o sol na Praça do Ferreira”, Gilmar de Carvalho estava muito impregnado do tempo em que vivia, a virada dos anos 1970 para os anos 1980, e é fundamental entender a dinâmica daquela Fortaleza, que, entre outras coisas, perdia a força de sua programação local na televisão para as produções em videotape. Gilmar de Carvalho, também um homem de imprensa, viveu todas essas mudanças e acabou levando tudo isso para sua dramaturgia. Falta a Andréia Pires compreender melhor como o autor transferiu seu tempo e sua cidade para sua cena. Ali, ele ainda escreve como cronista, como repórter. Ao fazer isso, certamente, o tempo e a cidade de Andréia Pires vão ganhar maior destaque em cena.