“First Cow” e o cinema como meditação
Quando penso no cinema da norte-americana Kelly Reichardt, penso no anacronismo de sua proposta estética e narrativa. Um cinema-reação que age em silêncio, camuflado, discreto. Que reage sem reagir. Que não quer provar nada, que nada afirma, que nada contesta. Não quer convencer, não quer explodir, não quer instigar. Um cinema que age pelo deslocamento dos tempos – daí anacrônico – e pela subversão tranquila das expectativas do momento cultural em que está inserido.
First cow, de 2019, lançado no Brasil recentemente pelo Mubi depois de circular por festivais de todo o mundo, é a coroação de seu projeto cinematográfico, que se desenha como um singelo conjunto de fábulas sobre o tempo, o exílio e a amizade. Dessa observação surge a primeira justificativa para seu caráter anacrônico: os temas de Reichardt se deslocam, naturalmente, da velocidade e da abundância de relações que são a cara do século XXI. Seus personagens fogem, buscam, escapam, caminham, viajam, atravessam, peregrinam. Não encontram lugar no cenário que os rodeia.
Adicione-se ao conjunto de temas presentes na filmografia da cineasta sua constante reflexão sobre os efeitos do capitalismo. Não de forma explícita e combativa, como o faz Ken Loach, o diretor que melhor consegue retratar as questões de classe e precarização do trabalho neste século. Reichardt aborda o tema de forma discreta, quase subliminar. Em First cow, a primeira vaca da região do Oregon, nos Estados Unidos, simboliza o poder de um homem e a ruína de outros.
De forma engenhosa, Reichardt constrói narrativas que contrapõem, no nível simbólico, a incongruência perene estabelecida pelo conflito entre as demandas de uma sociedade arquitetada sobre estruturas de exploração econômica e os eternos anseios individuais por amizade, afeição e pertencimento. O protagonista de First cow não encontra lugar para sua sensibilidade em meio ao bando de caçadores rudes e violentos que integra no início da trama. Vem saltando de bando em bando, de cidade em cidade, de emprego em emprego, em uma busca inconsciente por algo que só encontra em seus momentos de solidão: um galho de mirtilos, um novo par de botas, uma casa bem varrida, um feixe de flores.
Como um revisionismo despretensioso do cinema western, Reichardt nos oferece um olhar original e meditativo para as figuras que cruzavam os Estados Unidos em busca de novos territórios. O explorador, o homem sem passado, violento, calejado, dá lugar a um protagonista constituído por fragilidades e planos naufragados. No lugar de armas, suas mãos se ocupam com os cogumelos selvagens. No seu pé, a bota está furada. Seus amigos são um chinês fugitivo e uma vaca solitária. Em tempos de exaltação de conquistas, Reichardt faz de seu cinema um relicário de pequenos fracassos.
Seu projeto também oferece reflexões cuidadosas sobre o modo como são estabelecidos e executados os modernos referenciais de masculinidade. Se em Old joy (2006) havia a forte sugestão de desconforto gerada pela proximidade física entre os dois protagonistas, amigos de longa data que se veem obrigados a dividir a mesma barraca de acampamento, em First cow há uma celebração dessa intimidade masculina. Cookie abriga King-Lu em sua barraca e, em um gesto de cuidado, cobre o companheiro com um cobertor. Quando se reencontram no barraco do chinês, Cookie cuida da arrumação do espaço: varre o chão, sacode a poeira dos tecidos, decora um jarro com flores e cozinha para os dois.
Kelly Reichardt dedica First cow ao cineasta experimental norte-americano Peter Hutton. Falecido em 2016, Hutton tornou-se conhecido pelos filmes silenciosos e contemplativos que fez ao redor do mundo. Um de seus trabalhos mais conhecidos, At sea (2007), acompanha em sessenta minutos de pura reflexão silenciosa o ciclo de vida de um navio de carga, de sua fabricação à primeira viagem no mar. Reichardt abre First cow com um longo plano de um navio de carga cruzando um rio, talvez rendendo homenagem à estética de apreciação explorada por Hutton. Uma lembrança de que a maior desobediência que o cinema pode nos oferecer agora é a insubordinação à velocidade.