Bemdito

Marcelino Freire agita, tira o mofo e sacode as literaturas brasileiras

Novo livro do pernambucano marca os 30 anos da chegada a São Paulo e a vocação para instigar novos escritores e escritoras
POR Xico Sá
Foto: Marco Del Fiol (Divulgação)

O bom do lançamento online é não precisar comer torrada com patê de fígado, ufa, diz o escritor pernambucano Marcelino Freire, com 30 anos de São Paulo, SP, festejados nesta semana. E tem livro novo na praça para carimbar a efeméride: “Ossos do ofídio” , do selo que o autor inaugura, o “Baladeyra”, um banquete gráfico que reúne as editoras independentes Edith, Demônio Negro, selo doburro, Livre e Pedra Papel Tesoura.

Terça-feira, dia 13 de julho, meio-dia, o ator cearense Gero Camilo, outro exilado na Pauliceia, abre os trabalhos na live do Instagram para lembrar a trajetória freiriana. Não tem nem cheiro de foie gras. Está mais para a moela com cachaça e abraços de rodoviária. A escritora Adrianne Mirtes e o artista plástico Jobalo (o inventor dos títulos da maioria dos livros de Marcelino) contam histórias dos verões passados. No meio desse pandemônio todo, é preciso louvar o autor de “Angu de Sangue”.

Com ou sem patê de fígado, no vinho branco quente das livrarias ou na cerveja da estrada e do boteco, na missa de corpo presente ou na virtualidade pandêmica, Freire é o maior agitador das literaturas brasileiras. Agitador ainda diz pouco. É mais que isso. Juntar gente, com ampla, geral e irrestrita diversidade é sua causa. Vai ali no bairro das Perdizes e conversa com o poeta Augusto de Campos; sai do poema concreto para o novíssimo barroco baiano afilhado de Gregório de Matos. Assim vai organizando o movimento com antologias e encontros memoráveis. Pelo direito à literatura, como pregava o crítico Antônio Cândido, afinal de contas, o ser humano não passa 24 horas sem poesia ou relatos. Pelo direito a livros na cesta básica.

O cara escreve, edita, produz, provoca, espalha, mantém oficinas há quase duas décadas e comanda, desde 2006, o maior evento do ramo na pauliceia, a Balada Literária —agora também com edições em Salvador e Teresina. Marcelino é trezentos, trezentos e cinquenta, para aplicar aqui a humaníssima tabuada de Mário de Andrade. Sua missão é tirar a literatura das fardas e fardões. Mais cerveja com pastel e menos chá com biscoito nas academias.

Em tempos pré-Covid, o homem de Sertânia (PE), qual uma versão cangaceira de Santo Antônio de Pádua, parecia ter o dom da ubiquidade. Estava em todos os lugares, aqui e agora. Participava de um sarau ou slam das minas na periferia paulistana, horas depois liderava um bate-papo na Mercearia São Pedro —reduto boêmio de escritores— e, na manhã seguinte, abria um festival de autores em um Sesc do Nordeste. No intervalo da fuzarca, publicava “Angu de Sangue” (Ateliê Editorial) , “Contos Negreiros” (Record, prêmio Jabuti de 2006) e o romance “Nossos Ossos” (Record, prêmio Machado de Assis, 2014), entre outras aventuras na galáxia de Gutenberg.

Volto ao patê de fígado, embora eu goste mesmo é de um sarapatel completo, uma antologia de vísceras e miúdos. É no novíssimo “Ossos do Ofídio” que Marcelino Freire reflete, sacaneia e instiga a pensar sobre o processo criativo e editorial. Do patê do lançamento à divulgação da obra. Repare no conselho sensacionalista a um jovem autor: “Como faço para o jornal falar de mim? Cubra um cadáver com o teu livro”.

Catalogado como “ensaios de improviso”, o volume é uma continuação sincera e sacana de “Bagaceiro” (editora José Olympio, 2018), com máximas, mínimas, boutades, grafites, microcontos, poemas minutos e chistes que valem tanto pela reflexão da escrita como pela gargalhada.

No que chega o jovem autor independente, com mais uma pergunta: “Quantos exemplares eu mando imprimir? Quantos couberem debaixo da sua cama.”

Caso você acredite nas musas, mais uma preciosa dica: “Espere pela inspiração chupando uma manga”.