Memórias na casca do corpo
Sobre roupas emprestadas ou herdadas
Alice Dote
alicedote@gmail.com
Quase sempre que visito meus pais, saio pela porta carregando uma sacola de velhas roupas novas. Vencida pela necessidade de fazer-me caber em um novo lar e de deixar-me ainda em um antigo lar, ali ficou aquilo que não me acompanhou na mudança de endereço. A primeira mala que aqui chegou, aquela que saiu comigo quando saí de casa, não lembro bem o que trazia. À ela, seguiram-se, ao longo de dois anos de várias dessas visitas, outras tantas malas e sacolas, que, no entanto, não esvaziaram o guarda-roupa que lá permanece a guardar um pouco de mim.
As peças de roupa de minha mãe vão, aos poucos, entremeando-se às minhas nesses cabides, como se seu armário se espalhasse a partir do quarto ao lado e se misturasse ao meu, também distribuído parte aqui, parte lá. Desde cedo, foi comum a troca de roupas e outros objetos entre as três mulheres da casa, apesar das diferentes estruturas corporais. Agora, nossas roupas continuamente percorrem os dois quilômetros que separam os dois apartamentos, em um movimento de vai e volta entre eles, a depender de como vão e voltam as vontades, as lembranças, as curvas da carne.
Às vezes, a procura é por aquela peça recordada subitamente enquanto lavo a louça. Noutras, são elas que me recordam, roubando-me a atenção durante uma passeada do olhar pelos artigos pendurados no armário dos deixados para depois. “Sabe onde tá aquela…?”. “Lembra quando…?”. Começa assim. Minha mãe deitada à cama, eu ensaiando as peças sobre o corpo. Adentro o armário e parece abrir-se uma possibilidade (às vezes mais, às vezes menos desejada) de recordar. Entre provas de roupas, rimos de nossas inusitadas — mas bastante justificáveis à época — escolhas de vestuário, redescobrimos com ternura objetos que outrora tanto nos acompanharam e nos perguntamos os guardados motivos de ainda guardarmos aquilo que já não nos guarda.
Numa das últimas dessas visitas, tomei posse temporária de várias peças de minha mãe. A sensação de usar roupas de outras pessoas é a de uma cumplicidade silenciosa, como se nos fosse concedido andar por aí a portar algo de muito precioso — tão precioso que só perceptível a nós mesmos. Entre amantes, vestir-se do par parece ser um daqueles bobos estágios do romance que se inicia. Encontrando aquela ampla camisa de botões, agora uma entre as minhas e as dele que dividem o mesmo espaço, retorna-me a imagem daquela tarde de uns pares de anos atrás: a primeira vez que a usei, ela deixada displicentemente no meu quarto, depois colocada sem lavagem e sem permissão sobre o corpo, só para que ele furtivamente a visse em mim, o sol das cinco dourando a estampa em tons de roxo, como se fosse um nosso segredo.
Ao nos vestirmos de alguém, incorporamos novas camadas de memória às roupas e aos objetos que a produzem e carregam. Carregam alguém: que já não está, mas permanece em sutis fios de presença urdidos à trama dos tecidos. Ali os corpos deixam-se, involuntariamente e sem que percebam, gravados. Por menor que seja a importância que os deem, esses vestígios materiais tornam-se indícios irrevogáveis de sua presença no mundo. As coisas que vão se pertencendo de alguém vão também se investindo, nos acasos dos dias e sem alarde, de emoção: o acúmulo dos acidentes do tempo ou do banal cotidiano que testemunham nelas permanece em latência, esperando o momento de enternecer-nos.
As peças de roupa, dobradas, emboladas, amassadas num canto, numa sacudida preenchem-se de ar como se evocando uma presença fantasmagórica. Nos cabides, algumas parecem até manter o contorno de um corpo. O tecido guarda os vincos produzidos por um corpo. Uma mancha de um acontecimento que através dela perdura. Marcas incontornáveis do contínuo uso, que acumula um desbotado nas axilas, um cheiro nas golas. Elásticos esgarçados de tanto enfrentar e vencer coxas. Passantes por pouco sustentando-se de tanto sustentarem cintos a os pesarem e dedos a os puxarem. Bolsos cujos relevos vazios atestam o que ia ao alcance da mão.
É pensando nesses vazios corporificados que o autor Peter Stallybrass propõe pensar as roupas como não só portadoras de memória, mas como um tipo de memória, algo que nos recebe, guarda nossos gestos e dura a nós: habitamos e somos habitados por aquilo que tocamos. Ou, pensando nas roupas, por aquilo que colocamos sobre (ou em contato) com a pele, num toque de corpo-todo.
Coisas, simples coisas, que encarnam lembranças. Num gesto, o vazio preenche-se de braços, pernas, pescoço, quadril. Um corpo experimenta o lugar de um outro silente, ou ambos, talvez, dividem aquele espaço de ar numa configuração de presença-ausência. O desocupado dos sapatos, moldado pela particularidade inimitável de cada pé, habitado por novos passos.
Quando minha irmã faleceu, há mais de dez anos, tentei usar — eu, três anos mais velha — suas roupas, uma prática não estranha às experiências de luto. Seu quarto permaneceu aberto, mas não intacto: de algum modo, atualizávamos sua memória ao retomar suas coisas, tocá-las, usá-las. Meus dedos espremiam-se no seu tênis Adidas “bolinha”, como chamávamos, mas eu insistia em lá meter meus pés. Hoje muitas dessas provas de sua passagem pelo mundo continuam expostas no armário cuja porta de correr nunca corre a fechar. O que amparam?
Anacrônicas, declaram sem constrangimento o decurso do tempo. Não se livram de encarnar lembranças. Reencontrei os tênis depois de muitos anos: percorreu os dois quilômetros entre os dois apartamentos em uma sacola. O couro craquelado revela o passar dos anos de um tênis aparentemente novo aos olhares que desconhecem os pés que o calçaram. O escuro da palmilha segura o encontro com esses pés. O solado, curiosamente, uma superfície bem mais limpa, deixa a impressão — como uma óbvia, e por isso incômoda, confirmação — de que não foi usado o bastante. De que havia, ainda, muito chão a pisar. Não ousei calçá-los.
Aqueles que já viveram o luto de alguém muito próximo — próximo o suficiente para se responsabilizar por seus pertences e pela tarefa de rearranjar os espaços de presença e ausência deixados — provavelmente depararam-se com inúmeras gigantescas decisões, como o que fazer com o que sobrevive à sua partida. Que destino conferir às roupas e coisas dos nossos mortos? Essa, que pode parecer apenas uma grosseira questão de ordem prática, como tantas que impõem a morte, revela como podem mexer conosco esses inócuos objetos. Perigam tornar-se quase sagrados. Como uma multidão de reminiscências que, inquieta, infla-se e pressiona os espaços, fazem-se demasiado grandes. Por isso, muitas vezes, (também) eles têm que partir — embora, de algum modo, continuem a nos olhar a partir do vazio deixado (também) por eles.
Por aqui, entre lembrar, vestir, esquecer as roupas deixadas, cedidas, emprestadas, herdadas — as novas roupas velhas de outrem — são constantemente (re)descobertas, guardando a carícia e o atrito do corpo de quem vestiu. Se a pele, esse extenso órgão que, na dobra dentro-fora, vai acumulando a memória de nosso caminhar no espaço e no tempo, as roupas – como uma fronteira porosa que se interpõe entre a pele e o mundo, já mundo externo, mas ainda parte de nós, segunda pele removível – parecem constituir uma ambulatória casca de lembranças. É dela que me visto quando me visto de alguém.
Alice Dote é mestre em sociologia e artista visual. Está no Instagram.