Meu encontro com Contardo: dos fatos aos traços
O relato amoroso de uma entrevista com o psicanalista Contardo Calligaris, morto após longa luta contra o câncer
Lina Cavalcante
cavalcante.lina@gmail.com
Estava no trabalho e li uma notícia que Contardo Calligaris havia escrito uma peça sobre os homens, que iria estrear em breve. Na mesma hora, enviei um e-mail para uma editora querendo fazer esse freela. Eu tinha emprego fixo e me dava ao luxo de, como jornalista freelancer, escolher minhas pautas pelo meu interesse. Queria tentar desfazer a má impressão que um certo tipo de jornalismo tinha me deixado. Eu já lia Calligaris, já fazia análise e já lia Freud também. Psicanálise era algo que não só me interessava, como me impressionava.
Cheguei à clínica do psicanalista-entrevistado ainda de tarde, fui a pé, pois era no Jardins, perto de onde eu morava. No alto de um prédio, uma sala imensa, iluminada e minimalista. Uma vista linda de São Paulo. Eu tentando reparar tudo sem ser percebida. Muito bom gosto, pensei. Olhei para o divã, me vi deitada e imaginei o preço da sessão. Cheguei a rir sozinha. Ele muito gentil me recebeu e me ouviu com atenção. Fazia muitas referências a filmes, livros e peças. Eu adorava, pois minha passagem pelo jornalismo foi essencialmente no cultural.
Não se negou a responder nada, falava bastante e de maneira espontânea. Eu brinquei que ele estava no divã dessa vez e daí se deu o título da matéria (“Conversa Invertida”). Me dava uma bronca quando eu não tinha visto ou lido algo que ele considerava importante. Eu logo prometia me redimir. Falamos sobre muita coisa.
Levei um roteiro que rapidamente (no tempo outro, o dos afetos) se esgotou. O roteiro, não a entrevista. Foram umas três horas de conversa, entusiasmo e ouvidos atentos. Eu gravei, anotei e em alguns momentos deixei de lado tudo e fiquei só ouvindo. A matéria ficou bonita, eu adorei, acho que ele também porque depois me autorizou a publicar na íntegra, o que acabei não fazendo.
Boa parte do encontro ficou de fora da publicação, o que é comum. A revista era de bordo e precisava de assuntos leves e alegres para quem estava saindo de férias, fazendo uma viagem. Temas atravessados pela angústia ficaram em meu arquivo pessoal para quem sabe, um dia, serem mostrados por aí. Ou para eu acessar somente pelas marcas. Nunca mais me atrevi a ouvir aquela gravação. Gostava de ficar puxando pela memória e por esses traços que em mim deixou.
Na matéria, falamos sobre o que estava muito em voga na época, essa coisa toda em torno da felicidade, o Orkut, a virtualização das experiências e o Bauman, com seu amor líquido. Ele não via isso em sua clínica com adolescentes e me dizia que, nesse ponto, preferia Vinícius de Moraes com seu eterno enquanto dure, pois não era pelo tempo que se deveria qualificar a relação.
As respostas eram marcadas pela sua franqueza e a habilidade de falar de assuntos complexos de maneira simples. Quando pergunto sobre a virtualização das relações, ele diz que mesmo sem internet a maioria delas já era assim, virtual. Quando falamos sobre o marketing pessoal difundido no Orkut ele me diz que já faz mais de 200 anos que somos o que conseguimos convencer os outros que somos. Para o melhor e para o pior. E me disse achar corajosa a ideia de ter uma página constantemente aberta, em que todo mundo lê os recados que vão e voltam.
Falou sem preconceitos sobre famílias não tradicionais, coisa que alguns analistas têm dificuldade de fazer ainda hoje. Já naquele tempo, me falou sobre a relação do homem com sua própria masculinidade de uma maneira mais complexa e interessante. Tema, aliás, que ele problematiza na peça “O Homem da Tarja Preta”. Disse que a arte não tem obrigação de causar um efeito social, mas no fundo ele esperava que sua peça alcançasse isso.
Essa experiência eu nem chamo de entrevista porque nem toda entrevista é uma experiência marcante como essa foi. Segui acompanhando-o como leitora e com o passar dos anos algumas vezes discordamos, cheguei a ter raiva de algumas posições. Mas é presunçoso desvalidar toda uma trajetória por algumas falas a meu ver equivocadas. Em minha simples leitura, ele muito mais acrescentou do que o contrário e foi e é importante para a psicanálise brasileira, talvez para além dela.
Lina Cavalcante é jornalista e psicanalista.