Nadar é preciso
Desde o convite de uma amiga, feito no final do ano passado, para nadar aos domingos na Praia de Iracema, em Fortaleza, retomei um hábito que fazia minha cabeça por volta de 2015, 2016, quando ainda morava na Rua 25 de março, a poucos minutos da Praia dos Crush.
Antes disso, nadar parecia uma atividade destinada apenas às piscinas dos clubes e condomínios, não ao mar aberto, com seus perigos intrínsecos – relatos de afogamentos e de criaturas marinhas não identificadas eram corriqueiros – e dificuldades inerentes, já que a profundidade e a falta de referência tornavam a mecânica do nado, para os inexperientes, algo mais parecido com o movimento browniano.
Para começar, tomei dicas com pessoas experimentadas e comprei alguns equipamentos para tornar minha aventura mais segura. Mesmo tendo passado alguns perrengues à época, encorajado por um amigo cuja noção de perigo é tão pouco confiável quanto seu senso de direção, adquiri certo repertório a respeito dos riscos que poderia enfrentar.
Por isso, embora morando consideravelmente mais longe, tirar a poeira dos óculos de natação e da boia – fiel companheira que me salvou de alguns sufocos – parecia uma ótima maneira de quebrar a monotonia dos finais de semana em isolamento.
Aniversários que não pude comemorar, despedidas que não consegui ter, abraços que precisarão esperar a chegada das tão esperadas vacinas, beijos prometidos para o primeiro carnaval pós-pandemia – tudo seria lavado com as águas que, apesar do sal, fariam de meu coração terra fértil novamente, mesmo diante da secura desses tempos.
Nosso reencontro foi difícil a princípio. Me bater contra as águas do mar soava como o único jeito de avançar as distâncias que separavam meu corpo do ponto de chegada desejado. Mas quanto mais força fazia, menos conseguia sair do canto. Em pouco tempo cansava, o que me fez questionar inúmeras vezes se se tratava de uma questão de preparo físico ou se, de fato, meu esquema corporal não fora feito para o nado – ser mais de terra do que de água.
Foram longos meses tentando mudar o movimento das braçadas, a angulação de entrada da mão, o ritmo da respiração e outros tantos detalhes que se mostraram pouco úteis. Havia algo que não conseguia “entender” na relação com o mar, impedindo-me de ganhar autonomia e de evoluir nas distâncias percorridas.
Certo dia, no entanto, vi uma dupla cruzando, lado a lado, o intervalo entre os espigões da Rui Barbosa e da João Cordeiro, para retornar, em seguida, ao ponto inicial. Iam sem ajuda da boia, impulsionados pela confiança de que nada os impediria de cumprir o percurso determinado.
A impressão é de que não faziam força, pois seus corpos deslizavam fluídos, em um ritmo moderado, mas constante, jogando-se para frente a cada nova braçada. Assisti à cena após mais um de meus “voos de galinha”, em que nadava intensamente, batendo braços e pernas a todo vapor, para, em seguida, parar durante longos minutos, retomando o fôlego.
Além de o sal tornar a água mais densa e, portanto, pesada, o mar tem movimento próprio, causado pelas ondas e pelos ventos que varrem a superfície, produzindo marolas que fazem da respiração uma atividade desafiadora. Mas lá estavam eles, atravessando, braçada a braçada, uma distância que a mim parecia impossível. O que estava fazendo de errado?
Além das mãos que entravam suaves na água, percebi que mal batiam as pernas, movimento fundamental, quando se nadava em águas paradas, para manter a flutuação do corpo, mas aparentemente dispensável em mar aberto. Em resumo, enquanto a dupla adaptava o corpo e os movimentos às condições marítimas, com uma arrogância ansiosa, eu buscava vencer o mar pela força, fracassando a cada nova tentativa.
Fazendo as pazes com o mar
“Se quiser nadar bem, preciso me tornar um com as águas”. Submerso nessa ideia, esperei a chegada do próximo domingo e, mesmo cansado do dia anterior, quando me uni à massa para gritar aos quatro ventos “Fora, Bolsonaro!”, fui despertado pela expectativa de colocar a teste minha intuição. Era preciso fazer as pazes com o mar, por haver lhe faltado com o respeito. Por isso, antes da primeira braçada, saudei-o silenciosamente, e fui entrando devagarinho, ambientando-me com a temperatura e sentindo o movimento das ondas que, naquele dia, mal chegavam a se formar.
Nadei sem pressa. Ainda usando a boia, jogava um braço após o outro no crawl, mais ocupado com o ritmo do que com a força ou a velocidade. As penas mal se mexiam, acionadas apenas para ajudar a estabelecer uma linha paralela ao espigão. E, para minha surpresa, embora sem gerar a mesma potência de antes, o corpo começou a deslizar suave, impulsionado mais pela puxada da mão do que pela propulsão dos membros inferiores.
Ao invés de respirar de lado como fazia nas piscinas, preferi levantar a cabeça frontalmente, de modo a que pudesse buscar com os olhos algum ponto de referência que ajudasse a manter o nado retilíneo, economizando energia. Embora ainda tivesse que parar algumas vezes, nadava com um conforto que até então não havia experimentado.Nas paradas para tomar fôlego, cercado pelas águas verdes que refletiam o sol intenso, comecei a agradecer. Eu estava vivo.
Mesmo diante de tantas incertezas e apesar das injustiças que fazem desse direito tão primordial um privilégio, enchi-me de alegria pela chance de estar ali, naquele momento, aninhado nos braços de Iemanjá, orixá que guardava o terreiro de minha avó, a quem revejo a cada novo encontro com o mar. Nessa vida que anda tão triste, debaixo do vasto azul, interrompido apenas por algumas poucas nuvens brancas, lembrei-me de um verso da canção Lençóis, de Luedji Luna: “E eu não me sinto só, na imensidão do céu”. Guiado pelas águas de Iemanjá, continuei. Não estava mais só.