“Não fale em crise, trabalhe!”: Lacan contra a ética do bem
Sobre ética e psicanálise, há uma passagem no Seminário 7 (1960) em que Jacques Lacan lembra que, tradicionalmente, a ética aristotélica é apresentada como uma ética do bem, que se coloca como tal e que influencia a ética tradicional posterior. Segundo Lacan, essa ética marca todas as propostas que depreciam o desejo em nome da modéstia, da temperança, da prudência: as virtudes que buscam um caminho do meio sobre as paixões, um agir mediano. Pois, para Aristóteles, a mediania, o meio-termo seria a medida da ação virtuosa sobre as paixões.
Lacan, então, questiona a medida deste agir mediano. Afinal, qual seria a medida sobre a qual se guiaria o agir humano considerado ético, virtuoso, enquanto um agir pelo meio entre exageros passionais? Talvez onde o psicanalista francês queria chegar com tal pergunta é dizer que o caminho do meio, enquanto agir habitual temperante, prudente, e, portanto, virtuoso, é sempre marcado por uma ambiguidade.
Fazendo alusão óbvia a Friedrich Nietzsche, Lacan chega a dizer que “no fim das contas, a ordem das coisas sobre a qual ela pretende fundar-se é a ordem do poder, do poder humano, demasiado humano”. Ele ainda completa, justificando tal afirmação, dizendo-nos que “[a] moral de Aristóteles — vejam de perto, vale a pena — se funda inteiramente numa ordem certamente arrumada, ideal, mas que responde, contudo, à política de seu tempo à estrutura da Cidade”.
Para Lacan, a ética de Aristóteles, no fundo, “é uma moral do mestre, feita para as virtudes do mestre, e vinculada a uma ordem dos poderes”. Em outras palavras, talvez Lacan esteja querendo dizer nesta passagem que, por mais que a mediania seja a “medida” da ação humana moralmente correta e virtuosa, a verdadeira medida deste agir é dada por uma ordem de poder político posta, do momento, da circunstância política atual. Posta por um mestre, ou, para usarmos um termo hegeliano, por um “senhor”.
Assim, o caminho do meio, realizado por uma ação habitual, e que por isto lhe faz virtuosa, só o é porque a medida do “meio” entre os exageros é ditada por quem ocupa o poder. No fundo, o que Lacan está no dizendo é que a moral sempre é a do senhor, quem detém o poder. E, mais, na tradição ascética do Ocidente, desde o orfismo, estoicismo, cristianismo, kantismo ao capitalismo como religião em que vivemos, tal poder é sempre sobre o desejo, operando-se pela sua depreciação — e em nome de um ideal ascético, negador da vida.
Assim, a história tem mostrado como o “senhor” do poder atua quando se empodera de uma cidade ou de um país. E Lacan lembra, então, da semelhança entre os discursos de Alexandre, o Grande, e o de Hitler, quando um dominou Persépolis, e quando o outro dominou Paris: “Continuem trabalhando. Que o trabalho não pare”, ou, em outras palavras, “Que esteja claro que não é absolutamente uma ocasião para manifestar o mínimo desejo. (…) A moral do poder, do serviço dos bens é — Quanto aos desejos, vocês podem ficar esperando sentados”.
Com esta passagem, é claro que valeria muito fazer as distinções devidas entre as éticas que agrupei aqui sob o nome de “ascéticas”, as quais, pela depreciação do desejo, dariam, segundo Lacan, continuidade à relação de poder senhorio, que dita a medida do meio-termo do agir por um ideal de bem. Mas, para nós, no Brasil, é interessante lembrar daquele que sempre retorna às notícias, como um verdadeiro recalcado da nossa política: o ex-Presidente Michel Temer. Estou me referindo, aqui, ao seu slogan proclamado logo quando assume o lugar da ex-presidente Dilma Rousseff, no golpe de 2016. Na época, anunciado as novas diretrizes políticas do país, Temer também proclama as novas medias éticas: “Não falemos sobre crise, trabalhe!”.
Além deste episódio, não se poderia esquecer nunca do seu mais novo – ou não tão novo – aliado político: o atual presidente Jair Bolsonaro. No mesmo sentido de Temer, Bolsonaro também proclamou um lema diante das crises, agora não apenas econômica, mas também sanitária, a da pandemia do Covid19, ao dizer, em 2020, com milhares de mortos já registrados na época, que: “Economia também é vida!”. Bolsonaro estava falando sobre como a economia não poderia parar frente ao aumento de vítimas do Covid19.
Para Bolsonaro, as medidas de distanciamento social, como fechamento de mercados, restrições de espaços públicos, suspensão das aulas presencias, etc., poderiam prejudicar a economia do país, aumentar o desemprego, etc., e, deste modo, atingir a “vida” econômica. Ora, não é isto mesmo o que Lacan falava? Os slogans de Temer e de Bolsonaro não dizem outra coisa senão a de que a ética do país agora é a de ceder no seu desejo – e, no caso de Bolsonaro, o desejo de viver –, e de cedê-lo desde um ideal de bem prioritário: a saúde econômica do país.
A política e a ética do “salvar” a economia, inclusive em detrimento da própria vida, parecem dar continuidade à da negação dos próprios desejos, para se ascender sobre o corpo, fantasias, sonhos, projetos de vida. Contudo, os slogans de Temer e de Bolsonaro não parecem ter a mesma intenção do ascetismo ocidental. Pois, ainda que guiado pela medida dada por um poder eventual, como revelou Lacan, negar os desejos demasiadamente humanos era uma ética em nome de uma elevação espiritual, ao menos em discurso, propaganda e ideologia. Marcada por coaching, hackeamento do mind set, “co-criação” da realidade, autossuperação de metas de vendas, vivenciada no capitalismo neoliberal tanatopolítico, neo e cristofascista, a ascese contemporânea não parece ter como ideal de bem outra coisa senão mais trabalho, e mais trabalho não-remunerado, exaustão, desigualdade social, fome e um extremo “deixar morrer”.
Em resumo, como os de Alexandre e Hitler, os slogans de Temer e de Bolsonaro querem dizer: “Não fale em direitos, ceda nas suas demandas e continue trabalhando, pois quem sabe pelo ‘seu próprio mérito’, hardworking, você não ascenda!”. Talvez este seja o sentido mesmo dos slogans político-econômicos que nos cercam, em tempos de capitalismo como religião e de dinheiro como deus.