Bemdito

“Não jogue o seu filho fora só porque ele se declarou LGBT”

Expulsão de LGBTQIA+s como violação do direito à moradia
POR Rodrigo Iacovini

Em seu livro Guardei no armário, Samuel Gomes nos conta sua trajetória de autoconhecimento enquanto homem, gay, negro, morador da periferia de São Paulo e de família evangélica. O livro é muito mais do que isso, claro, assim como Samuel é muito maior do que os marcadores sociais colocados sobre ele. Fiquei com vontade, inclusive, de virar amigo – alô, Samuel, me nota! – e de conversar por horas numa varanda sobre as nossas vidas.

Uma parte do livro, contudo, não sai da minha cabeça: é o capítulo em que seu pai nos conta como foi para ele, que até então tinha muitas certezas do que aceitaria ou não dos membros de sua família, saber que seu filho era gay. O relato é muito comovente, porque tenta estabelecer um diálogo direto com outros pais e mães a partir da sua vivência e mesmo das suas limitações. Alerta para os profundos impactos que a rejeição pode causar na vida dos filhos. “Não jogue o seu filho fora só porque ele se declarou LGBT. Não jogue fora!”, diz. 

Mais de uma semana se passou e a frase continua ressoando. Não jogue fora. Não-jogue-fora. Não jogue fora! 

Apesar do medo que senti durante anos pelo momento em que me assumiria, tive uma sorte absurda de ter nascido em uma família acolhedora. Milhares de outras pessoas LGBTQIA+s não tiveram – ou têm – a mesma sorte, sendo muitas vezes jogadas fora, descartadas pelas famílias. Ao mesmo tempo, muitas perdem a família e a casa. Ficam sem chão, perdem o teto. 

O trauma não se dá, portanto, somente pelo rompimento dos laços familiares, mas também pela própria perda da moradia. Dentro daquele espaço, elas se compreendiam enquanto filhas, netas, irmãs, vizinhas, colegas de escola, integrantes do time do bairro, como pessoas. Nossa relação com a casa é muito maior do que de simples abrigo, ela envolve a construção da própria identidade, a proteção da intimidade e a vivência do afeto. É a base sobre a qual desenvolvemos todas as nossas relações, inclusive as econômicas, profissionais, educacionais e culturais. Esta expulsão é, portanto, uma violação do direito à moradia que vivenciam milhares de LGBTQIA+s, despojadas de pertences materiais e imateriais. Jogadas fora.

Muitas casas de acolhimento oferecem refúgio em situações como essa, mas não conseguem abrigar todas as pessoas LGBTQIA+s expulsas. Batalham cotidianamente para manter as portas abertas, já que não contam com o suporte que o Estado deveria fornecer. Se há poucas ações efetivas e estruturadas de atendimento a essa população no campo da assistência social e de políticas de direitos humanos, muito menos se encontra em políticas e programas de habitação.

Embora o Comentário Geral número 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU tenha estabelecido que um dos elementos fundamentais para a efetivação do direito à moradia adequada é a priorização de grupos vulneráveis – mulheres, crianças e adolescentes, idosos, LGBTQIA+s – no atendimento habitacional, o fato é que pouco ou nada fazem as autoridades públicas habitacionais no Brasil com foco na população LGBTQIA+.

Acessar a moradia para LGBTQIA+s não é fácil, mesmo quando se tem uma boa renda. Já me surpreendi trocando de roupa antes de ir ao apartamento que visitaria para alugar, pois a roupa estava bem chamativa (ou seja, nada mais que um conjunto de moletom bem colorido) e havia visto um salmo na descrição do WhatsApp do proprietário, que acompanharia a minha visita ao apartamento. Conheço pessoas que precisaram se mudar em função da violência lgbtfóbica de um vizinho, o qual as ameaçava fisicamente em qualquer oportunidade que pudesse alegar o mínimo incômodo.

O poeta cearense Adriano Espínola nos ensina “Toda casa é uma árvore, / Que no corpo se enraíza: / O universo tem começo / No chão em que se habita”. Quantos universos estão hoje, neste minuto, sendo interrompidos? Quantos filhos estão sendo jogados fora? Que o mês do orgulho LGBTQIA+ que se encerra seja sempre um momento de visibilizar nossas diferentes lutas: pela liberdade de amar, pela saúde física e mental, pela segurança para ser quem somos e também pela moradia. Não há vida digna possível sem moradia.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.