A força de Cassandra
Liniker irradia em cada luz de mercúrio. Em Manhãs de Setembro, série que estreou no catálogo da Amazon Prime na sexta-feira, dia 25, a cantora e atriz estreante Liniker nos apresenta Cassandra. No contexto do Dia do Orgulho LGBTQIA+, celebrado ontem (28 de junho), assistimos à estreia de uma produção que não propõe a discussão sobre corpos trans na perspectiva da violência e da morte, como é tão comum na dramaturgia.
Falar sobre vivências trans é falar sobre amor, amizades, independência, trabalho, dificuldades, tristezas, ansiedades, maternidade. É falar sobre protagonismo. Estas nuances de Cassandra, 30 anos, estão nos cinco episódios da primeira temporada da produção.
No centro da narrativa, está um baque que desorganiza a vida da protagonista: Leide (Karine Teles), uma mulher com quem teve breve envolvimento no passado, reaparece trazendo Gersinho a tiracolo (Gustavo Coelho), menino de 10 anos, que tanto queria conhecer o pai.
O garoto encontra uma mulher trans que rejeita a ideia de se tornar mãe no momento em que está de mudança para um lugar só seu, uma kitnet com um significado forte de independência para Cassi. Enquanto Leide tenta se virar em subempregos para ganhar dinheiro, criar Gersinho e ainda encontrar tempo para si e namorar, mãe e filho vivem em situação de vulnerabilidade social, moram em um carro velho.
“Você é bonita, pai”. A frase que marca a trama ecoa na voz infantil de Gersinho, enquanto é encarado pelo olhar firme de Cassandra, ao pedir para o menino não chamá-la dessa forma. É um recurso para mostrar que o garoto tenta ressignificar a expectativa que tinha de ter uma referência paterna.
Em outro momento da série, Gersinho chega a usar um vestido, na tentativa de mostrar admiração por Cassandra. A difícil relação da nova mãe com seu filho vai se desenrolando ao longo da temporada, ambos tentando encontrar-se dentro daquela situação repentina.
Para além da maternidade não desejada, a série nos provoca com outros assuntos tão entranhados em nosso dia a dia, como a plataformização e precarização do trabalho, já que a protagonista é entregadora por aplicativo, tendo um Brasil em crise como pano de fundo. Paralelamente, Cassandra tenta projetar carreira nos palcos da música, como cantora. E é neste ponto em que Liniker e Cassandra se encontram e nos entregam cenas fabulosas.
A produção é costurada pela linha de uma trilha sonora bem escolhida, em que a cantora Vanusa (1947-2020) é a inspiração diária de Cassandra e amiga presente em todos os momentos de aflição, conduzindo as decisões da protagonista e oferecendo conselhos contundentes (até demais). Tudo dentro da cabeça dela, e na voz de Elisa Lucinda, que não aparece, mas dá vida a esta Vanusa idealizada por Cassandra.
O título da série é também nome de música gravada pela cantora nos anos 1970. Uma bela homenagem – além, bem além da Jovem Guarda. Entre os motivos que eu daria para quem lê este texto assistir à série, sem dúvidas, a trilha sonora iria figurar no topo. Destaque para a interpretação de “Paralelas”, do cearense Antônio Carlos Belchior. A canção foi gravada por Vanusa no álbum Amigos novos e antigos (1975) e ganha interpretação de Cassandra na trama.
Outro motivo que poderia enumerar é a reunião cuidadosa do elenco. Paulo Miklos e Gero Camilo formam um casal firme e bem estruturado, com mais de 50 anos de idade. Impossível não gostar deles dois juntos. Linn da Quebrada também está ao lado de Liniker, como Pedrita, uma amiga querida de todas as horas.
A personagem vivida pela jovem Isabela Ordoñez é uma surpresa que cresce ao longo da temporada. Na série, ela é Grazy, a melhor amiga de Gersinho, inteligente, engraçada, esperta, e enquadra o amigo quando ele insiste em chamar Cassandra de pai. O roteiro é assinado por Josefina Trotta, Alice Marcone e Marcelo Montenegro, com direção de Luis Pinheiro e Dainara Toffoli.
Este primeiro trabalho de Liniker como atriz mostra que vidas trans são completas, complexas, e não se resumem a situações de vulnerabilidades e violências. Sem matar estes corpos, sem reduzi-los aos olhos da sociedade – que já é transfóbica -, a produção demarca o protagonismo de uma mulher trans vivendo uma mulher trans. Cassandra é uma mulher foda.