O que é uma missão cumprida? #1
A obediência cega às ordens e a banalidade do mal expressam desumanização e recusa à capacidade de julgar
Ricardo Evandro S. Martins
ricardo-evandro@hotmail.com
É bem famoso o texto da filósofa Hannah Arendt, quando escreveu sobre como Eichmann, ex-oficial nazista, acusado de ter enviado milhares de judeus ao extermínio, teria alegado, em sua defesa diante da Casa da Justiça, em Jerusalém, após ser capturado na Argentina – onde vivia fugitivo de seus crimes de guerra –, que apenas estava cumprindo ordens. Mas já não é tão famosa a passagem em que a mesma filósofa alemã fala sobre como “Eichmann tinha uma vaga noção de que havia mais coisas envolvidas nessa história toda do que a questão do soldado que cumpre ordens claramente criminosas”.
Arendt destacou a curiosa “grande ênfase” que Eichmann deu no seu interrogatório de polícia ao dizer “que tinha vivido toda a sua vida de acordo com os princípios morais de Kant, e particularmente segundo a definição kantiana do dever”. Esta passagem é interessante porque, segundo a própria filósofa, “isso era aparentemente ultrajante, e também incompreensível, uma vez que a filosofia moral de Kant está intimamente ligada à faculdade de juízo do homem, o que elimina a obediência cega”.
De modo mais simples, Arendt está comentando essa curiosa declaração de Eichmann, ao ter citado Kant, uma vez que o filósofo alemão do século XVIII foi justamente aquele quem falava da autonomia da razão, ou seja, da possibilidade de o sujeito legislar a si mesmo, segundo os preceitos do uso puro da racionalidade sobre o agir; em outras palavras, segundo o uso da razão prática, universal e necessária, da qual se conclui que se deva agir de modo que sua própria ação seja universalizável.
É verdade, por outro lado, que no seu famoso texto O que é o Iluminismo?(1783) Kant falava sobre dois usos possíveis da razão: o privado, e o uso público. Enquanto o uso privado é “aquele que se é autorizado a fazer de sua razão em um certo posto civil ou em uma função da qual somos encarregados”, já o uso público da razão “deve a todo momento ser livre, e somente ele pode difundir o Esclarecimento [Iluminismo] entre os homens”, pois é “o que fazemos enquanto sábios para o conjunto do público que lê”.
Como se vê, para Kant, é próprio do Iluminismo esse exercício de ser livre, de se pensar livremente, de se ousar saber por si mesmo – Sapere aude!– que é o de se conseguir manter o raciocínio sempre crítico, sob o “tribunal da razão”. Contudo, Kant diz que ouve por todos os lados imperativos, comandos, buscando por obediência: “O oficial diz: não raciocinais, mas fazei o exercício! O conselheiro de finanças: não raciocinais, mas pagai! O padre: não raciocinai, mas crede (Só existe um senhor no mundo que diz: raciocinai o quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!)”.
É por isso que a afirmação de Eichmann causa espanto: como um oficial nazista, responsável pela morte cruel e sumária de tantas pessoas pode arrogar para si a faculdade de julgar, seu uso da razão de modo ético, como se kantiano fosse, se, justamente, foi Kant quem falava sobre como nós, seres humanos temos um valor, que não é o do preço, mas o da dignidade? E que devemos agir com o outro de modo que esta ação também possa se refletida para nós mesmos?
Arendt explicou que ao ser questionado sobre sua “ousadia de invocar o nome de Kant”, Eichmann teria se justificado: “a partir do momento em que fora encarregado de efetivar a Solução Final [o genocídio judeu], deixaria de viver segundo os princípios kantianos, que sabia disso e que se consolava com a ideia de que não era mais ‘senhor de seus próprios atos’ (…), como ele mesmo disse, descartara a fórmula kantiana como algo não mais aplicável”. Como ainda diz Arendt, Eichmann distorcera o teor do imperativo categórico da ética kantiana para o que o advogado do partido nazista Hans Frank formulou como “imperativo categórico do Terceiro Reich”: “Aja de tal modo que o Führer, se souber de sua atividade, a aprove”.
Porém, neste ensaio, o que julgo ser o mais importante a ser dissertado, aqui, são duas reflexões: a primeira, é a passagem em que Arendt diz sobre como “não existe a menor dúvida de que Eichmann efetivamente seguia os preceitos de Kant: uma lei era uma lei, não havia exceções”; e a segunda, é sobre como se pode responder, finalmente, à pergunta do título deste ensaio, “O que é uma missão cumprida?”, sobre a qual, aliás, deve-se, antes, saber “O que é uma missão dada?”, ou, ainda, podendo ser reformulada de modo ainda mais simples, conforme colocou o filósofo italiano Giorgio Agamben, quando, de um modo que acredito que pode mesmo resumir as duas questões anteriores, pergunta-se: “O que é um comando?”
Mas deixarei estas duas reflexões para o texto da coluna do próximo sábado, quando tentarei responder às perguntas colocadas.
Ricardo Evandro Martins é doutor em Direito e professor da Universidade Federal do Pará. Está no Instagram.