Racismo no sistema judiciário, direito à cidade e dano ao bem comum
Não estava planejando escrever sobre a queima do Borba Gato, até a prisão de Paulo Galo e Géssica Barbosa. Muitas análises e opiniões já haviam coberto quase todos os ângulos que considero necessários para entender a questão da queima da estátua, como a coluna de Camila Holanda aqui no Bemdito, que apontou a importância de ações como essa para que seja possível “reparar, romper estruturas, olhar para o passado e afirmar que o presente e o futuro podem muito mais e precisam ganhar novos rumos”. Leonardo Avritzer e Vladmir Safatle estão inclusive trocando farpas em torno da interpretação do ato, mostrando que o tema ganhou relevância até nos rincões da academia brasileira.
Ainda que tudo já houvesse sido dito, somos obrigados a permanecer no assunto diante da prisão de Paulo Galo, o caso que atualmente representa mais o Brasil do que nossos atletas nas Olimpíadas de Tóquio. Nada mais simbólico do que um militante antifacista negro preso por manifestar sua indignação com uma homenagem a um assassino racista.
Não pretendo entrar na análise do ponto de vista do processo penal, deixo isso para os colegas juristas que efetivamente entendem do assunto. O melhor professor de processo penal que tive a honra de ser aluno escreve aqui no Bemdito e tenho horror apenas de imaginá-lo lendo os erros grotescos que conteria uma análise minha sob essa ótica. De toda forma, diferentes criminalistas entrevistados pela Folha de S. Paulo foram categóricos em avaliar como ilegal a prisão de Galo.
Meus dois centavos para a discussão provêm de um misto de perplexidade e indignação: mesmo que Galo estivesse efetivamente envolvido na queima da estátua do Borba Gato, considero ilegal e imoral sua prisão pelo fato de que ele estaria apenas exercendo seu direito fundamental à cidade. Apesar de não estar expressamente incluído na Constituição Federal, o direito à cidade é um direito fundamental protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro, protegido desde a aprovação do Estatuto da Cidade (Lei 10.257 de 2001).
Como o parágrafo segundo do artigo 5o de nossa Constituição afirma, “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”. Tendo em vista que o próprio Estatuto da Cidade é uma Lei Complementar, fruto de uma previsão constitucional que visava a garantir o bem-estar dos brasileiros (“art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”); não resta dúvida de que reconheceu e consolidou o direito à cidade como direito fundamental em seu art. 2o ao garantir “o direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.
No seu exercício, não apenas nos é assegurado o direito, como também nos é conferido, o dever de transformarmos e intervirmos diretamente sobre a cidade, combatendo especialmente as desigualdades e injustiças sociais plasmadas pelos nossos centros urbanos. Assim como outros direitos fundamentais protegem seus cidadãos dos arbítrios do Estado e da ação indevida de outros indivíduos, o direito à cidade assegura o poder e confere dever aos cidadãos de resistir à ordem injusta, racista e desigual que se impõe nas cidades brasileiras.
Para aqueles que neste momento começam a contra-argumentar, argumentando que isso não significaria a possibilidade de destruição de uma estátua, de depredação do patrimônio público, de vandalismo: gostaria de lembrar que, a todo instante, forças econômicas, políticas e sociais estão construindo e destruindo o espaço e o patrimônio nas cidades brasileiras. Constroem-se casas, prédios, condomínios, shoppings; destroem-se florestas, rios, paisagens naturais, patrimônios arquitetônicos e culturais, formas tradicionais de vida, meios de subsistência.
Mesmo aquelas construções mais básicas e supostamente situadas dentro dos parâmetros de legalidade estão de alguma maneira afetando negativamente o conjunto da população. A todo minuto, edifícios residenciais e comerciais são construídos, por exemplo, em detrimento da qualidade de vida de seus moradores do entorno. Deterioram a paisagem, diminuem as condições de insolação e circulação de ar da vizinhança. Causam incômodo tremendo ao longo dos meses de sua construção, com poeira e barulho, além de entulho obstruindo as calçadas. Em muitas ocasiões, sequer se justificam por constituírem futura moradia para uma determinada população, sendo produzidos meramente como ativos financeiros no circuito de reprodução do capital especulativo. A naturalidade com que enxergamos a construção de arranha-céus esconde que se trata, muitas vezes, de algo tão pernicioso quanto as formas de destruição do espaço urbano.
No entanto, é assustadora a seletividade penal brasileira quando o assunto é o dano causado ao bem comum. Mais de 6 anos se passaram sem o julgamento dos responsáveis pelo desastre de Mariana, os quais não responderão mais como homicídio pelas 19 mortes causadas. Mais de 55 mil pessoas foram obrigadas a abandonar suas casas em Maceió, que está literalmente afundando por conta da exploração do subsolo pela Braskem, também ainda sem a devida responsabilização dos agentes. A mesma Justiça de São Paulo, que decretou a prisão de Paulo Galo, inocentou 14 réus pela morte de sete pessoas causadas pela cratera gerada pelas obras do metrô da capital.
Esses são apenas alguns exemplos de uma história eivada de privilégios e seletividade penal vivida na construção das cidades e na gestão da política urbana. Poderíamos nos perguntar, por exemplo: como está o processo de responsabilização dos gestores públicos e empresários dos sistemas de mobilidade, o qual causa anualmente doenças pulmonares em milhares de adultos e crianças? Estão sob investigação os dirigentes das indústrias que geram resíduos que põem em risco a existência humana no planeta? E aqueles que interromperam as vidas de populações inteiras para instalações de barragens e hidrelétricas? E o genocida responsável pelas mais de 500 mil mortes do último ano?
Está evidente que a causa da prisão de Paulo Galo não é o incêndio ou o dano ao patrimônio público. Trata-se, na verdade, do racismo operante no sistema judiciário brasileiro articulado a uma ameaça velada a todos os cidadãos que estejam potencialmente em vias de tomar em suas mãos o destino do país e de nossas cidades. É um novo episódio da histórica criminalização dos movimentos sociais brasileiros, praticamente os únicos atores políticos que atualmente buscam transformar sua indignação com o estado lastimável do país em ações políticas diretas de enfrentamento. Não podemos admitir que o exercício de um direito seja fonte de criminalização. Está na hora de dizermos “CHEGA!”