Racistas por omissão
Em 2020, Trump assinou uma ordem executiva para excluir dos contratos federais qualquer treinamento de diversidade e inclusão que contivesse “conceitos divisivos”, “estereótipos de raça ou sexo” ou “bodes expiatórios de raça ou sexo”. Desde então, a teoria racial crítica — ou melhor, um pot-pourri caricatural dos estudos raciais — está no centro de um acirrado debate político nos Estados Unidos, um pouco como a igualmente caricatural ideologia de gênero por aqui.
Após a eleição de Biden, o debate segue em polvorosa, com os detratores da teoria racial crítica acusando professores de doutrinar estudantes indefesos com uma tese dogmática e parcial, segundo a qual brancos seriam opressores inatos. Para eles, a teoria promove a ideia de que os Estados Unidos são um país racista, o que seria inaceitável e incorreto.
O movimento que hoje se conhece por teoria racial crítica surgiu de um workshop criado por Kimberlé Crenshaw, Neil Gotanda e Stephanie Phillips em 1989. Os organizadores desejavam compreender o Direito a partir da experiência dos negros com as instituições jurídicas e desenvolver uma teoria sensível à raça.
Hoje o movimento é vasto e contempla uma multidão de pesquisadores espalhados pelo mundo com abordagens e filiações diferentes. Em comum, todos eles comungam da ideia de que o Direito e as estruturas políticas que o sustentam refletem as desigualdades raciais e podem legitimar a opressão sofrida pelos negros.
A premissa — a política cristaliza, reproduz e mantém desigualdades por meio do Direito — é a mesma adotada pela teoria jurídica feminista e pelos Estudos jurídicos críticos. O método também é comum: analisar o Direito a partir das ciências humanas e sociais para libertar os seus operadores da inocência de que trabalham com uma estrutura neutra.
Diferentemente do que afirmam alguns, a teoria não reifica os sujeitos em opressores e oprimidos inatos, mas aponta que pessoas e instituições podem replicar o racismo, mesmo que não estejam conscientemente comprometidas com ideais racistas.
O direito tributário não ficou alheio aos movimentos críticos que chacoalharam a academia a partir do final da década de 70. O Congresso de estudos jurídicos críticos, que pode ser tomado como um marco inicial de todos estes movimentos, foi realizado em 1977. Interessados nas intersecções de raça, classe e gênero com a tributação, professores como Grace Blumberg, Anthony C. Infanti, Bridget J. Crawford e Dorothy Brown formaram o que hoje conhecemos como Direito Tributário Crítico.
Em Whiteness of Wealth (A Branquitude da Riqueza, em tradução livre), publicado este ano e ainda sem tradução no Brasil, Dorothy Brown — inserida nesta longa linhagem de estudos — argumenta que a política fiscal estadunidense tem contribuído para perpetuar as desigualdades entre negros e brancos.
O argumento não é novo. Em 1996, Beverly I. Moran e William Whitford já abordavam a questão em A Black Critique of the Internal Revenue Code (Uma crítica negra do Código Tributário Federal, em tradução livre). No artigo — publicado sete anos após a realização do workshop da teoria crítica racial —, os autores concluíram que alguns elementos do sistema tributário federal, como isenções, deduções e abatimentos, favoreciam pessoas brancas em detrimento das negras.
Como os autores deixam claro, não se trata de uma discriminação direta ou daquilo que os constitucionalistas estadunidenses costumam chamar de intenção discriminatória, uma vez que não está em questão a hipótese do legislador ter desejado conscientemente criar um sistema tributário que discriminasse a população negra.
Nada no texto literal das normas analisadas previa tratamentos diferentes para negros e brancos, palavras que, inclusive, sequer constam do código tributário daquele país. Ainda assim, os efeitos daqueles dispositivos aparentemente neutros eram diferentes em relação a negros e brancos. Muito menos óbvia e mais desafiadora, a questão passa pelo racismo estrutural, um mal que afeta também o Brasil.
De acordo com a PNAD Contínua, em 2018 o rendimento médio mensal das pessoas brancas ocupadas foi de R$ 2.796 e o das pessoas negras, de R$ 1.608, uma diferença de 73,9%. Ao mesmo tempo, a renda das mulheres negras é inferior à metade da que recebem os homens brancos (44,4%) e equivale a 58,6% do que recebem as mulheres brancas.
Quando a comparação é entre mulheres brancas e homens negros, estes estão em desvantagem, pois ganham, em média, 74,1% do que ganham aquelas. É nesse contexto que o sistema tributário deve ser lido, à luz de padrões pré-existentes de discriminação que não foram criados pela tributação, mas com os quais as normas tributárias interagem, produzindo efeitos que podem reforçar a desigualdade racial.
Sistema de créditos como alternativa
Neste cenário, duas das propostas de Brown em seu novo livro ajudam a pensar os problemas brasileiros. Segundo a autora, publicar dados dos contribuintes desagregados por raça, como já se faz para o gênero, pode contribuir para a construção de um sistema tributário menos injusto.
No Brasil, como nos Estados Unidos, os relatórios da Receita Federal sobre as declarações de imposto de renda das pessoas físicas não trazem informações sobre a raça dos declarantes. Isso é prejudicial, porque a ignorância daqueles que elaboram políticas fiscais sobre a forma como o sistema tributário afeta diferentes grupos populacionais obviamente contribui para perpetuar as deficiências do sistema. Não se pode corrigir aquilo que se desconhece.
Ao mesmo tempo, a divulgação desses dados contribuiria para sensibilizar a sociedade, a academia e os profissionais do direito tributário. Estes são, no melhor dos cenários, insensíveis ou céticos em relação às abordagens de raça e gênero na tributação.
Brown também sugere a criação de um sistema de créditos de imposto de renda, como compensação histórica pela segregação racial nos Estados Unidos. O país já possui uma espécie de crédito que se assemelha a um programa de renda mínima, o Earned Income Tax Credit, o qual famílias de renda baixa e média podem usar para reduzir o imposto a recolher ou aumentar a restituição a receber. A sugestão de Brown é criar um sistema similar, porém exclusivo para contribuintes negros.
Na teoria, a proposta é simples: o Congresso estabeleceria um valor fixo de crédito ao qual todas as pessoas negras teriam direito. Caso a renda auferida pelo contribuinte negro seja inferior ao crédito, ele recebe a diferença, como uma restituição. Caso a renda seja superior ao crédito, o contribuinte paga a diferença. Nesta última hipótese, o imposto a recolher seria inferior àquele devido por contribuintes brancos que aufiram a mesma renda, uma vez que estes não teriam direito ao abatimento.
Em um país como o Brasil, em que uma parcela significativa da população não recolhe imposto de renda e está desobrigada até mesmo de entregar a respectiva declaração — uma falha administrativa que deve ser corrigida —, programas de transferência de renda parecem mais eficientes e adequados para reduzir a desigualdade entre negros e brancos. Como a população negra é sobrerrepresentada entre os mais pobres, programas sociais como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada tendem a beneficiar mais essa parcela da população.
Além de ser uma medida de justiça fiscal — uma vez que as famílias beneficiadas por esses programas são justamente as mais oneradas por nosso sistema tributário regressivo — programas de transferência de renda são estratégicos para o desenvolvimento. Seja na forma de créditos tributários que reduzem o imposto a pagar e aumentam a renda disponível, seja por meio da transferência direta, políticas redistributivas ampliam o consumo e impactam positivamente o PIB.
Mas a discussão por aqui ainda é difícil. Avançamos pouco no debate mais básico da redistribuição entre classes sociais. Mesmo uma proposta como a tributação de lucros e dividendos, capaz de gerar impactos positivos em termos de redistribuição, e que conta com amplo apoio de economistas e entidades sociais, foi atacada recentemente pelos mais diferentes grupos de interesse, inclusive por tributaristas. O caráter conservador, e às vezes francamente reacionário, do campo jurídico brasileiro, nos leva a perguntar se discussões mais complexas como o debate sobre raça e gênero na tributação não estariam realmente interditadas.
Invisível, a raça ainda não é plenamente reconhecida como um fator relevante para a elaboração de políticas fiscais, o que torna o direito tributário “racista por omissão”, para empregar a expressão de Lélia Gonzalez (em Por um feminismo afro-latino-americano), com quem temos muito a aprender.