São Pedro e La Niña, inimigos do Brasil?
A recente crise no setor elétrico, impulsionada pela escassez de chuvas e a consequente queda no volume dos reservatórios das hidrelétricas, chegou para somar mais uma preocupação – além da pandemia e dos seus impactos sociais e econômicos.
A situação, no entanto, já havia sido prevista pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) há alguns meses e as projeções de volumes de chuvas insuficientes tendem a se manter para os meses de junho, julho e agosto.
Diante desse cenário, levantou-se uma cortina de preocupações com relação à possibilidade de vermos se repetir a crise energética de 2001, com racionamento de energia e apagões. No entanto, segundo o diretor-geral da Aneel, André Pepitone, a situação de 2001 não irá se repetir, ainda que reconheça que a situação atual é de grande gravidade.
Um dos principais argumentos para essa afirmativa é o de que hoje a matriz energética brasileira tem uma maior participação de outras fontes renováveis, como a solar e a eólica. Esse fenômeno contribuiu para a redução do percentual de participação das hidrelétricas em nossa matriz, que em 2001 era cerca de 90% e hoje se encontra em aproximadamente 59%.
No que se refere à gestão da matriz energética brasileira, podemos traçar um paralelo entre a política do governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2001, e a atual, do presidente Jair Bolsonaro. Privatizações, tímidos investimentos em geração e transmissão de energia, pouco ou nenhum planejamento para a expansão de outras fontes na matriz energética brasileira são algumas das características comuns.
O atual governo se destaca, no âmbito da política energética brasileira para geração de energia, com uma “política sem ideias, que não planeja e não pensa em médio e longo prazo”, segundo Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. Foca na construção de hidrelétricas na Amazônia e na reativação do programa nuclear brasileiro para a construção de novas usinas nucleares – que enfrentam grande resistência da comunidade e que vão no sentido oposto à tendência mundial. Estimula ainda a implantação de novas termelétricas a combustíveis fósseis. E, até o momento, executou parcos investimentos na ampliação e no fortalecimento da infraestrutura de transmissão e conexão.
Este último vem sendo um grande gargalo para o crescimento das energias renováveis no Nordeste. Isso porque não há possibilidade de escoamento para todo o volume de energia gerada previsto nos projetos de energia eólica e solar para a região. Espera-se que esse déficit seja minimizado com as obras do último leilão de infraestrutura da Aneel, realizado somente no final de 2020.
Crise energética
A crise energética de 2001 ficou associada à falta de planejamento e investimentos no setor de energia. Como consequência, vieram os apagões, o racionamento, o aumento de custos para os consumidores e empresas do setor endividadas e dependentes de recursos públicos, sem mencionar os impactos socioambientais decorrentes.
Em 2021, já temos o risco de blecautes na transmissão nos horários de pico e vislumbramos um aumento de pelo menos 20% na conta de energia devido ao acionamento das termoelétricas e impactos socioambientais agregados às medidas de contenção da crise.
Aliado à má gestão energética e à falta de planejamento para o setor de energia, o cenário ambiental vem ajudando a agravar a crise. Sabe-se que o fenômeno natural La Niña, que afeta principalmente a região centro-sul do país, onde se encontram os maiores reservatórios, não explica sozinho toda essa crise. São fatores potencializadores as mudanças climáticas e o desmatamento da Amazônia.
De acordo com Renata Libonati, professora do Departamento de Meteorologia da UFRJ, a floresta em pé é importante para manter o fluxo de umidade que é responsável por levar as chuvas para o centro-oeste e sudeste.
Os dados divulgados pelo INPE, referentes ao desmatamento na Amazônia este ano, já se mostram maiores, em termos percentuais, em relação ao mesmo período do ano passado. Já o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) indicou que o mês de maio deste ano foi o de maior desmatamento em relação a uma série histórica para o mês nos últimos dez anos.
Pacote para conter crise preocupa
O conjunto de medidas anunciadas pelo governo para conter a crise energética é outro tema que preocupa. A aprovação de medidas provisórias para ampliar o poder de decisão do Ministério de Minas e Energia na gestão das barragens, o despacho ilimitado de térmicas e o controle da vazão de águas nas hidrelétricas são algumas dessas ações.
A primeira apresenta sérios riscos de enfraquecer as decisões da Agência Nacional de Água (ANA) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na gestão das barragens, podendo colocar em risco outros usos da água que não sejam para a geração nas hidrelétricas.
A segunda promove o acionamento total das termelétricas que geram energia utilizando como base a queima de combustíveis fósseis, que são altamente poluentes e que contribuem sobremaneira para o aumento dos gases de efeito estufa. O calor liberado para o resfriamento das estruturas também pode afetar o ecossistema local e, para aquelas que possuem chaminés, existe o risco de contaminação do ar devido ao escape de fuligem. Ressalta-se ainda que o seu acionamento total vai na contramão dos compromissos assumidos pelo Brasil na última Cúpula do Clima.
Já a terceira traz consigo impactos socioambientais relevantes para o turismo, navegação, agropecuária, pescadores e meio ambiente. Um exemplo dos impactos decorrentes da redução da vazão de usinas foi sentido no início deste ano, por comunidades que residem no entorno da Usina Belo Monte. Foram reportados pela comunidade local e por diversos especialistas impactos relevantes na fauna, afetando a reprodução de alguns peixes, a manutenção da flora local, bem como a segurança alimentar das comunidades.
O futuro da energia no Brasil
Diante desse cenário, fica evidente que o Brasil necessita de uma nova política energética. Uma política que seja sustentável, que atenda a todos e que seja focada na ampliação de outras fontes renováveis. Reduzir a dependência da matriz energética brasileira das fontes hídricas e fósseis, que ainda representam cerca de 85% de nossa geração, contribuirá tanto para aumentar a segurança energética do país como para reduzir as emissões de gases de efeito estufa.
O Brasil já possui diversas vantagens climáticas e ambientais para essa expansão: um potencial de geração de energia eólica gigante (cerca de 500 gigawatts, segundo estimativa da Abeeólica), sol 365 dias ao ano em algumas regiões e abundância em recursos como biomassa e biocombustíveis, que são essenciais para a produção de energia por hidrogênio verde, fonte de energia renovável extremamente promissora.
Ampliar a participação de outras fontes renováveis exige planejamento, investimento, regulamentação e incentivo a implantação de indústrias especializadas.
A consequência desse esforço será uma energia mais barata, segurança no sistema, geração de emprego e impulsão à retomada do crescimento econômico. Nesse cenário, o futuro das usinas hidrelétricas seria o de funcionar como reservas energéticas, o que as colocaria num cenário estratégico dentro do sistema de abastecimento energético.
Portanto, fica evidente que continuam a querer fazer essas duas crises semelhantes apenas pela permanência de seus culpados: São Pedro e La Niña, inimigos do Brasil.