Bemdito

Sobre um amigo

Um amigo triste em um cenário bonito e uma lembrança persistente pronta para se transmutar em memória
POR Luan Brito
Mateus Dantas

Conheci meu amigo nesta cidade. Na verdade, aqui conheci todos os meus outros amigos, mas este é especial. Na primeira vez em que nos vimos, ele me deu uma carona, e as primeiras palavras que ouvi saírem de sua boca foram “Essa foi a música que ouvi dirigindo pro enterro do meu pai”, enquanto uma versão acústica de um rock melancólico dos anos 2000 ressoava no carro. É fácil perceber que existe uma presunção cênica na frase, como se ele houvesse tentando me impressionar, ou pior, como se realmente tivesse buscado pela trilha sonora ideal, mas eu também sou um órfão, e pude ler em seu rosto que se tratava mesmo de uma coincidência genuína, uma coincidência triste que precisava registrar verbalmente, como muitas das outras que nos aproximaram a partir de então. Eu tinha 16 anos, e sorri desconsertado, mas me senti melhor quando, em seguida, percebi em seu olhar que mentiria em nome do meu conforto ao dizer “Tá tudo bem, eu já superei”. Na vida acontecem alguns encontros como esse, ocasiões em que pessoas até o momento desconhecidas agem com uma absurda especificidade, uma semelhança conosco que só poderia ter saído de nossa própria cabeça. A identificação é como se descobrir subitamente apaixonado — recorro a este por falta de exemplo melhor —, e assim como estar apaixonado, nada garante a permanência do sentimento depois dos primeiros segundos. 

Quando se é jovem desse jeito, nada é tão parecido com você quanto a cidade em que vive. Eu via o meu próprio e o rosto de quem conhecia e amava em todas as poças de chuva de Fortaleza como se fossem espelhos, e algumas vezes odiava a semelhança tanto quanto a diferença que esses espelhos podiam exibir. Eu me sentia horrível a maior parte do tempo, e de toda forma, aqui existe vida por toda a parte, e muito sol. Uma vez, disse ao meu amigo que, aloirados contra a luz, os pelos dos braços pareciam com centenas de lagartas de fogo, e ele me pediu para repetir a frase mais de uma vez, para conseguir anotá-la. Eu jamais lembraria do que disse até hoje não fosse o registro. É mais ou menos isso que sei sobre Fortaleza: o que pude escrever e reescrever em minha memória ao lado dos meus amigos, do meu amigo. Porque a lembrança não é exatamente o oposto do esquecimento, nós modificamos a memória, assim como reescrevemos o registro da história. E a memória pode trair um mau escritor. Há bastante vida por aqui, sim, mas como parece ser a imprecação de todos os brilhosos centros urbanos, a melancolia está em toda parte, ainda que oculta. Sempre que penso em Fortaleza, as imagens do Mara Hope encalhado na verde vastidão da praia da leste, enquanto à esquerda os garotos saltam do espigão é rapidamente sobreposta pelas dos bêbados do centro, homens marginalizados atrapalhando o tráfego, importunando os transeuntes, cometendo a sua pequena mas incessante vingança contra sociedade. Pessoas tristes em um lindo cenário. Como o meu amigo.

É por isso que sinto reviver meu amigo todos os dias, nessa cidade que se parece com ele e comigo. Ele tinha um rosto de adolescente cretino, e amava e odiava como um, mas era o maior homem que conheci. Sempre vestia camisas de botão largas como uma cortina de banheiro e era três cabeças mais alto do que eu. Toda vez que o abraçava, sentia que podia me erguer como se fosse uma pluma, e com frequência fazia isso. Eu o detestava nesses momentos, mas, por algum motivo, continuava a abraçá-lo. Minha família o amava, e ele nos amava como se fosse um de nós. Gostava de surpreender com presentes e com sua presença. Como um caçador de recompensas, buscava por pessoas que gostassem de tê-lo por perto, e amava a fragilidade desses momentos de felicidade suspensa, em que em qualquer instante podia se revelar a pouca espontaneidade do encontro: ele havia planejado tudo o que acontecia, e se contentava ao perceber a alegria de todos, ainda que não comungasse dela de verdade. Conversar com ele sempre foi fácil ainda que soubéssemos que ele estava acometido por enorme sofrimento psíquico, ao contrário de mim, que sou triste mesmo quando estou muito alegre. Tinha a generosidade de uma mãe e uma indelicadeza brutal e desconcertante ao discordar; tinha uma inteligência que até hoje não compreendo, dizia os maiores absurdos como se fossem platitudes, ao mesmo tempo em que se esquivava de entender obviedades quando ditas por alguém que detestava. 

Nos últimos tempos, a vida tratou de nos separar, e Cristo, como eu gostaria de me lembrar da última vez em que estivemos juntos. A lembrança sobre a última vez que falei sobre ele, contudo, é nítida como um girassol. Eu estava tremendo, ao telefone. Conversava com meu irmão, que também tremia. Houve um momento de silêncio antes de decidirmos qual de nós dois iria chorar, e meu irmão, por fim, chorou primeiro, enquanto coube a mim o papel de consolo. A chamada durou cerca de três minutos. Depois de desligar, chorei por dois dias, sem parar. 

Eu tive um ano muito difícil. E não falo tanto sobre essas coisas quanto o meu analista acha que eu deveria. Mas continuo a pensar que tudo isso aconteceu por causa da primeira mentira que ele me contou, 14 anos atrás. “Tá tudo bem, eu já superei”. Ele não superou, meu amigo não superou e eu também não. Nas horas vazias, também penso nas vidas que poderia ter vivido e perdi, naquilo que o mundo matou em mim ao me tirar o meu pai. É duro. Eu não quero fazer do meu amigo um messias pessoal. Sei que ele odiaria isso. Entretanto, como a água que insiste em entrar em um barco furado, penso nele deste modo: nossa cidade, a cidade onde nos conhecemos, sofreu ao ponto que poderia ter se tornado um verdadeiro deserto, mas continua a se mover — em plena luz, as lufadas de poeira jogadas no ar pelas rodas dos automóveis são como um cobertor de ouro em pó sobre o corpo dos desabrigados. Gente triste em um cenário bonito, gente viva. Meu amigo me disse uma vez que existe muitas formas de se despedir, de cumprir um ritual para costurar novamente o tecido rasgado do tempo, desde que estejamos prontos. Eu acho que estou, agora. Pronto para, talvez, deixar de lembrar dele da forma como ele era e passar a lembrar da forma como eu o imagino. Pronto para transformá-lo em memória. Pronto para, entre todas as formas de demonstrar carinho, escolher a mais simples de todas. Dizer eu te amo.

Luan Brito

Escritor, mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.