Bemdito

Também há beleza em desistir

A decisão de Simone Biles de não disputar as finais ensina mais sobre força do que sobre fragilidade
POR Juliana Diniz
Laurence Griffiths/Getty Images

O triunfo sempre rende emoções inebriantes. Ele está associado à simbologia da força, da resiliência e da persistência, da coragem e da capacidade. Triunfar leva ao delírio, à emoção e à alegria, e desperta em quem o observa sentimentos intensos, sejam positivos ou não. Todos desejamos, em alguma medida, o sucesso, a prazerosa sensação de que ter chegado a um ponto almejado, por isso a dimensão mítica da glória permeia o imaginário coletivo representada em deuses, cetros e mantos.

É difícil imaginar que o poderoso não deseje, de forma obstinada e indiscutível, o próprio triunfo, como se se tratasse de um apetite humano fundamental, inexorável. Quem não sonharia em ganhar seis medalhas de ouro numa olímpiada, tornando-se, definitivamente, o mito de seu esporte e a glória de sua nação? Quem não se sentiria motivado a, podendo, exibir tamanha demonstração de força?

Simone Biles nos disse, gentil e calmamente, que não, não disputaria, abriria mão de suas potenciais vitórias, “desistiria” da competição para cuidar de sua saúde mental. Foi um choque para muitos. Como ela suportaria o peso do julgamento público por sua desistência? Desistir – um verbo ácido, melancólico, arfante e sufocado, que rende imagens sempre tão tristes. Desistir não é fácil quando se tem poder, desistir pode ser mais difícil que triunfar.

Conhecemos bem sua trajetória pessoal de sofrimentos – Biles foi uma das centenas de atletas abusadas pelo ex-médico da seleção americana de ginástica, Larry Nassar. Foi corajosa o suficiente para expor à mídia que, assim como muitas de suas colegas, também foi vítima do abuso de alguém que deveria zelar por sua saúde. Não foi o primeiro episódio de sua vida em que o contexto explorou sua vulnerabilidade. Na infância, Simone foi resgatada aos três anos pelo serviço social de um ambiente familiar desequilibrado pela dependência de álcool e drogas de sua mãe biológica. Seu repertório de traumas e dificuldades poderia facilmente render uma vida adulta quebrada, atormentada pela dor e pelas marcas de seu passado difícil.

Não é o que vemos. Biles é uma mulher de um brilho indiscutível, uma competência absurda e uma maturidade emocional incomum para alguém tão jovem. Você, que já passou dos seus 24 anos há algum tempo, teria força o bastante para admitir publicamente que não se sente bem o suficiente para ser o que esperam de você?

O episódio de Biles pode ser uma oportunidade única para entendermos melhor a matéria de que somos feitos. Que a pedagogia do mérito e do triunfo obscurece um aspecto fundamental da nossa humanidade: a sombra, os longos caminhos que atravessamos envoltos na dúvida, na busca de sentido, na compreensão de nossos propósitos.

O que eu desejo? Por que eu faço? O que me espera?

São questionamentos que nos tornam mais próximos da força do que da fragilidade, porque mesmo o triunfo, para ter brilho, precisa vir permeado por algum sentido. 

Um ego forte só é alcançado ao custo de muito trabalho mental, integridade espiritual e sofrimento. Ele é um pilar que garante que estaremos sempre próximos de nós mesmos, ainda que estejamos atravessando um período de angústia e incerteza quanto ao futuro. Ainda que não tenhamos respostas para aquelas perguntas fundamentais.Simone mostrou que é mulher íntegra, fiel a si mesma e consciente de seus limites – sabendo como dizer aos outros: já chega, vou me recolher. Para uma mulher, não há lição olímpica mais luminosa que essa.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.