Tudo sempre pode piorar para as mulheres
A pandemia está prejudicando a luta por igualdade de gênero – e no Brasil pode ser muito pior
Geórgia Oliveira Araújo
georgia.araujo17@gmail.com
Não é exagero afirmar que ainda não é possível medir o impacto que a pandemia de Covid-19 terá no futuro da humanidade. No entanto, algumas pistas já se mostram bastante evidentes e igualmente alarmantes: entre elas, as consequências negativas para a luta das mulheres por igualdade de gênero em praticamente todas as esferas da vida. No Brasil, onde já enfrentamos condições adversas de violência, violações de direitos e desigualdades, esse retrocesso pode ser ainda pior, porque aqui ainda não conseguimos vislumbrar o fim da pandemia.
No último dia 30 de março, o Fórum Econômico Mundial divulgou o relatório sobre a desigualdade de gênero (Global Gender Gap Report 2021), que trouxe dados expressivos sobre a piora nos indicadores avaliados pelo órgão em 156 países. As condições de vida em quatro parâmetros – participação e oportunidade econômica, desempenho educacional, saúde e sobrevivência e empoderamento político – se deterioraram com a pandemia, colocando ainda mais desvantagens sobre as mulheres e exacerbando a carga de trabalho destas.
O relatório destaca que, com a pandemia, o trabalho doméstico não remunerado, as diversas jornadas ininterruptas e a carga mental da atividade de cuidado sobrecarregaram de forma significativa as mulheres, que já eram responsáveis por essas atividades. A necessidade de fechamento de creches e escolas e as condições extraordinárias de trabalho prejudicaram as mulheres em todas as configurações laborais. No caso daquelas que trabalham em home office, conforma-se no ambiente doméstico a atividade profissional e o trabalho de cuidado contínuo. Já no caso das trabalhadoras de profissões que não podem ser realizadas remotamente, a ausência de rede de apoio dificulta que elas continuem laborando e faz muitas vezes com que percam o emprego.
Além de tudo isso, os setores que têm maior participação feminina, como o setor de serviços, foram os mais afetados, determinando desde o início da crise pandêmica a possibilidade de “she-cession” – uma recessão que atingiria principalmente as mulheres. Houve também um aumento generalizado nos números de violência doméstica e familiar contra mulheres em diversos países, principalmente nos que precisaram passar por períodos intensos de isolamento social.
De acordo com os cálculos do Fórum, houve um aumento do tempo estimado para que o mundo atinja a paridade de gêneros: no relatório relativo a 2019, esse prazo era de 99,5 anos, enquanto em 2020 passou a ser de 135,6 anos. Nos indicadores de paridade política e econômica, essa distância é ainda maior: levará 145,5 anos para que a igualdade política seja atingida e espantosos 267,6 anos para que a lacuna que existe entre homens e mulheres seja encerrada no âmbito econômico.
Mas esse é o cenário global. Perto do que enfrentamos no Brasil, parece até otimista.
Em um país com mais de 350 mil mortos pela Covid-19, que já teve quatro ministros da Saúde em pouco mais de um ano, que começou de forma tardia, lenta e desigual a vacinar sua população e que tem na figura do presidente um aliado do coronavírus, a deterioração da qualidade de vida das mulheres e o aumento das dificuldades e da sobrecarga de trabalho que estas enfrentam terão – e já estão tendo – efeitos devastadores. A começar pelo mercado de trabalho, dados da PNAD Contínua do IBGE apontam que as mulheres foram as que mais deixaram a força de trabalho nos últimos dois trimestres de 2020 e representaram a maior parte dos trabalhadores desocupados no mesmo período.
Embora seja possível afirmar que o auxílio emergencial pago pelo Governo Federal durante parte do ano de 2020 tenha permitido que essas trabalhadoras – tanto as desempregadas, quanto as que atuam por conta própria – ficassem fora do mercado de trabalho, os números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) sobre o emprego formal também apontam para a perda de postos de trabalho ocupados por mulheres, em oposição ao incremento de colocações ocupadas formalmente pelos homens.
Com o fim do programa de renda emergencial – bem como a sua fraca retomada, repudiada pelo próprio setor econômico do governo – e a evolução da pandemia no país para o seu pior momento, já é possível afirmar não só que ainda não existe horizonte de recuperação econômica, mas também que, quando esta vier, será extremamente desigual. As mulheres mais pobres, as mulheres negras, aquelas que vivem nas regiões Norte e Nordeste e aquelas com baixa escolaridade e que exercem atividades informais, passarão mais tempo em recessão.
Não é à toa que essa já é a realidade de quem passa por insegurança alimentar no Brasil. Dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) mostram que 116,8 milhões de brasileiros(as) estão em situação de insegurança alimentar no país, dos quais 19,1 milhões passam fome. Retornamos a patamares de 2004 e não se vê nenhuma preocupação do Executivo Federal com essa situação alarmante. Somando-se a esse cenário desesperador, não podemos deixar de lembrar de que os indicadores de violência contra as mulheres cresceram em 2020 e que a pandemia dificultou sobremaneira o acesso às instâncias de denúncia de agressores e acolhimento de mulheres em situação de violência. As medidas de distanciamento social e de lockdown, extremamente necessárias para diminuir o contágio, deixaram as mulheres em posição de ainda mais vulnerabilidade, agravada pela sobrecarga de trabalho e pela falta de recursos econômicos e de uma rede de apoio e proteção social.
Não sei calcular quantos anos serão necessários para que se atinja a paridade de gênero no Brasil. Mas sei dizer quantos dias do último ano passei sem ler uma notícia sobre violência contra mulheres ou sobre as diversas vulnerabilidades enfrentadas por estas na pandemia: nenhum.
Geórgia Oliveira Araújo é colaboradora do Bemdito e pesquisadora na área de violência de gênero. Está no Instagram.