Um cardápio de memórias da cidade
Se eu transformo em consumo o dinheiro que ganho com meu trabalho, que ele vá para os pequenos negócios locais
Paulo Carvalho
paulomarquesdecarvalho@gmail.com
Os tempos estão tão difíceis que já esqueci daquela lista de desejos do que fazer após a pandemia. No começo, a lista era ambiciosa e tinha até um mochilão no México ou a ida a um show do Nick Cave. Com o tempo, a geografia da lista mudou de rota e minha sede de mundo está na esquina de casa. Eu queria mesmo era que tudo isso passasse para eu passear na Praia de Iracema, almoçar demorado no Mar de Rosas, assistir a um filme no Dragão e esticar a saída para tomar cerveja com amigos no Serpentina. Fortaleza fez aniversário esta semana, 295 anos. Fico pensando na Fortaleza que nos espera depois dessa tempestade.
Falar de cenas cotidianas de antes da pandemia parece um sonho idílico. No redemoinho de lembranças, sinto o gosto do ragu de carne nos dias de comemoração com a família no Cantina de Napoli, de uma roda de poesia lá no L’Café, nos brindes de comemoração de uma conquista profissional no Villa Alexandrini, do reencontro com amigos de faculdade cantando Smells like teen spirit no Boozers, de dividir a tortilla espanhola do El Molino com a esposa, de sentar na calçada do Vilarejo na Rua Iracema para ouvir a set list, do cafezinho solitário no Urbici ou mesmo de uma caminhada até o Tio Lelo para pegar o queijo coalho fresco que ele separava para nós toda quinta. Nessas memórias avulsas, percebo que todos esses lugares fecharam suas portas durante a pandemia e não estarão lá para me receber quando eu puder descortinar Fortaleza outra vez. Nossa experiência de cidade passa também pelos bares e restaurantes que frequentamos, sobretudo numa Fortaleza que ainda tem muito a melhorar em espaços públicos de convivência. E posso ampliar isso para as mercearias, lojas, salões, barbearias e todo o mercado de bairro e pequenos negócios que são cenários do nosso cotidiano e empregam uma parte significativa da força de trabalho local.
Um levantamento do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) indica que 99% das empresas brasileiras são pequenos negócios. Não preciso ir nas estatísticas para confirmar o impacto da pandemia nesses estabelecimentos porque hoje as ruas brasileiras estampam um obituário a céu aberto de comércios fechados sem perspectivas de recomeço. A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) informou que no Brasil, o setor de bares e restaurante teve 350 mil estabelecimentos fechados, com 50 mil somente no primeiro trimestre de 2021. Isso impactou a demissão de mais de um milhão de trabalhadores no setor durante esse período. Aqui no Ceará, estima-se que cerca de oito mil estabelecimentos foram encerrados em razão da pandemia.
A gestão de funcionários no dia a dia do setor é ainda mais difícil do ponto de vista emocional, o que coloca o proprietário de pequenos negócios em permanentes escolhas dramáticas, já que ele costuma possuir uma relação direta com a estória de vida de cada empregado, do câncer da mãe do cozinheiro, da gravidez da mulher do bartender, do luto pela perda de familiares pela Covid vivida pela atendente do caixa. Do ponto de vista contratual, em 2020, os estabelecimentos recorreram às várias opções apresentadas por normas emergenciais trabalhistas que tentavam salvaguardar algumas situações de crise (principalmente as antigas Medidas Provisórias 927 e 936). A manutenção dos funcionários foi arquitetada através de banco de horas negativo, antecipação de férias e feriados, suspensão do contrato e redução de jornada com compensação do auxílio emergencial. Isso possibilitou um fôlego financeiro ao setor empresarial. Ocorre que em 2021 não há ainda uma legislação renovada sobre o tema, visto que a Medida Provisória 927 perdeu a sua vigência e a ausência de auxílio emergencial impede suporte a novas suspensões dos contratos dos empregados. Ou seja, o ambiente dos bastidores da gestão de bares e restaurantes é desolador, além de estar agravado com uma inflação alta que diminuiu consideravelmente a margem de lucro dos produtos e uma receita insuficiente para pagar tributos e dívidas bancárias. Ou seja, se o restaurante não fechou, ele está funcionando “quebrado” ou praticamente com margem muito curta de sobrevivência financeira.
A transferência para o delivery, em alguns casos, não foi solução. Alguns restaurantes não conseguiram adequar o seu perfil a esse modelo. Passar na frente do Mar Menino e vê-lo fechado (não sei se permanente ou temporariamente) é de partir o coração. Quem o frequentava sabe que o produto vendido ali era antes de tudo uma experiência de cidade para além da comida boa. Quem acompanhou suas tentativas de reinvenção (o chavão imposto a todos) no início da pandemia, viu que não faltaram chamados. Muitos bares, principalmente aqueles em que a sua cozinha não é o principal diferencial, também não conseguiram ter o delivery como solução.
Outro problema grave é a relação dos pequenos empreendimentos com os aplicativos de entrega, em especial o Ifood, que domina o setor. Muitos estabelecimentos ficam completamente dependentes do serviço desses aplicativos, incluindo a vulnerabilidade na mudança de valores para taxa pagas pelo estabelecimento. O Ifood tem quase um monopólio do setor de entregas na pandemia, visto que o Rappi, Uber Eats e James ainda não conseguem ter a mesma escala de mercado. Há processo no Conselho Administrativo de Disputa Econômica (Cade), em que a Rappi acusa Ifood de usar essa sua posição dominante para celebrar com restaurantes contratos de exclusividade com restrição de concorrência no setor. Nessa briga de gigantes, os restaurantes possuem pouca força de, por exemplo, ter um aplicativo próprio, porque a taxa de conversão é muito baixa, já que o cliente desconfia do fornecimento de seus dados a esses aplicativos individuais e evita a perda de praticidade com o acúmulo de aplicativos no celular.
Não é meu objetivo aqui discutir sobre a abertura desse setor nesse período em que os números da pandemia ainda estão dramáticos. O tema é controverso, inclusive entre os estabelecimentos, e torna-se mais complicado com o desalinhamento de gestões políticas necessárias para uma crise dessa dimensão. Minha prosa aqui é outra. Entre os novos hábitos que adquiri nessa pandemia, um deles foi o de ficar mais atento para onde entrego o dinheiro que é fruto do meu trabalho. Consumir de pequenos negócios permite que a economia gire dentro da minha cidade e mantenha os postos de trabalho dos meus pares, na urgência dessa cadeia produtiva. Como consumidor, também fiquei atento ao posicionamento público dessas empresas durante a crise. Algumas posturas me fidelizaram ainda mais aos lugares que eu já frequentava. Outras retiraram qualquer possibilidade de eu consumir naquele lugar novamente.
Pequenas condutas do consumidor fazem diferença nesse momento. Se for pedir delivery, vale confirmar antes se eles atendem por telefone, evitando o desconto agressivo dos aplicativos. Divulgar os pequenos negócios em redes sociais ajuda a compensar a falta de reserva financeira para publicidade. Alguns estabelecimentos optaram por rifas, vouchers e outras saídas de reservas como tentativas de manutenção através de uma rede colaborativa. Esses outros pequenos ajustes de conduta vão construindo devagarinho uma ética de consumo a favor desses pequenos espaços que trazem encanto para nossa experiência de cidade.
Antes de um pequeno negócio abrir, alguém transformou um sonho em metas, planilhas e coragem de empreender em Fortaleza. São bares, restaurantes e pequenos negócios que ainda resistem para continuarem cenários das memórias que narram essa cidade.
Escrevo porque quero que eles estejam erguidos quando eu retornar a viver as ruas de Fortaleza. Até lá, vou dando meu apoio da forma que eles sinalizarem e eu puder ajudar. Quero reencontrar o Mar de Rosas, o Serpentina, o Mandir, o Descoberta, a Cozinha Lamarca, o Bomtequim, o Paraíba, o Del Plata, o Sublime, o Chamego, o Mira Cozinha, a Casa Mansa, o Torra, o Amika, o Cora, o Bleecker, o Abaeté, o Zelig, o Tipo, a Culinária da Van, a Casa Patuá, e minha vontade é de fazer uma lista interminável de lugares que são pequenas pasárgadas na cidade. Haveremos de voltar, na hora certa.
Paulo Carvalho é professor de Direito do Trabalho e doutor em Ciências jurídico-políticas pela Universidade de Lisboa. Pode ser encontrado no Instagram.