Um filósofo entre bárbaros
Em 527, Roma já havia caído nas mãos dos bárbaros incorporados, paulatinamente, ao território daquele que foi um dos mais duradouros impérios da humanidade, quando Justiniano, após a morte de seu tio, assumiu — não sem a colaboração da mulher, Teodora — afinal o que restava da dignidade fulgurante dos outros tempos, dessa vez no Oriente: Bizâncio, aliás, Constantinopla, hoje Istambul, prolongaria, por mais mil anos, a sobrevivência de certas estruturas políticas anteriores e não apenas resistiria ao peso das armas invasoras, mas também avançaria contra elas e contra minorias internas. E calhou de recair sobre estes pequenos infelizes, em especial religiosos de todos os matizes, a perseguição e a tragédia.
Os maniqueus, divididos entre o bem e o mal, teriam de preferir a fuga ou o silêncio da conversão; nem arianos, negando a identidade de Cristo com o Todo-Poderoso, nem monofisistas, creditando a Jesus apenas a natureza transcendental, poderiam mais conviver no mesmo solo em que persistia a doutrina oficial da Igreja; os que seguiam Nestório, patriarca da cidade, foram banidos, assim como judeus. Fechou-se ainda a Academia de Platão, que desde o auge de Atenas atraía interessados no pensamento do filósofo grego e viu reacender a curiosidade que lhe era dedicada com a influente produção do século III. Porém, enquanto muitos desses neoplatonistas, para escapar ao calvário, tiveram de se abrigar no jurado inimigo da coroa, a Pérsia, um entre eles seguiu caminho contrário e, ao invés de ir a leste, andou a oeste, numa trajetória que poderíamos longamente apresentar se a soubéssemos mais do que apenas por suposições e algum detalhe.
Acossado pelos oficiais que haviam sido encarregados de massacrá-lo, Hipatos de Samotrácia (503-571?) deve ter se servido de transporte marítimo pelo mar Adriático até a Península Itálica e de lá, a comboio, junto com um grupo de andarilhos a quem se juntou revelando-se como sacerdote de uma ordem desconhecida, penetrou o coração da Europa, desbravando com excessiva dificuldade a cadeia de formações geológicas que lacera as duas metades do continente. Já ali, no que hoje seria talvez a Alemanha porém à época ainda terreno ocupado pelos francos, encontrou uma espécie de mosteiro, mais propriamente um conjunto de humildes celas nas quais se recolhiam eremitas devotados à quietude, à solidão compartilhada, a orações e, por que não, a demonstrações públicas, extravagantes de fé e abnegação. Sempre em profundo mutismo, plantavam, colhiam e rezavam, não fosse por Hipatos, que também lia e escrevia em condições inviáveis.
O mais antigo texto que a brutalidade dos milênios não destruiu foi um comentário ao único manuscrito que conseguiu preservar da biblioteca acadêmica, ou melhor, trechos esparsos de dois dos 54 tratados escritos por Plotino (205-273) e compilados nas Enéadas por seu discípulo Porfírio. Num alforje, que manteve até o fim da vida como lembrança dos anos de juventude, guardava “O que é o ser vivo e o que é o Homem?” e “Sobre o Destino”, dos quais se utilizou para construir a ideia de inevitabilidade da transformação humana num ser vivo aliviado à rapidez do tempo e às lonjuras do espaço; requeria-se daquele que pretendia a tal nirvana o cultivo de uma existência que ele chamava de noturna — defendida pela lua das agressões do sol em sua sanha de tudo flagrar e expor.
Escreveu, em páginas de perspicazes sabedoria e memória, já que não podia consultar o original, sobre A república; tratou, ainda que de modo breve, a respeito das reflexões aristotélicas referentes à comédia, as quais pareciam vivas àquela altura, mas que hoje são consideradas perdidas para sempre; redigiu também um minuciosíssimo livro descrevendo as plantas que se encontravam em toda a região. Legou à posteridade somente um poema, a única obra, pelo que nos consta, não finalizada em grego. Podemos, por óbvio, transcrevê-la:
Eiris sazon idisi, sazun hera duoder.
suma hapt heptidun, suma heri lezidun,
suma clubodun umbi cuoniowidi:
inspirinc haptbandun, invar vigandun.
Há bem mais; esses foram, porém, os que nos chegaram. Aliás, outro documento resistiu. Numa carta a destinatário incógnito, atualmente assimilada ao acervo da Österreichiche Natiotalbibliothek e de onde se extraem quase todas as informações biográficas que aparecem aqui, reuniu títulos e resumos de sua prolífica escritura, composta de uns tantos 200 volumes, entre os quais os mais intrigantes eram os de aparente caráter antropológico. Discorreu sobre muitos ou todos os povos bárbaros, retratando hábitos políticos, costumes culturais, modos de habitação, festas, casamentos, relações de parentesco. Criou um vívido esboço de alanos, burgúndios, godos, ostrogodos, visigodos, físios e hérulos, vândalos e lombardos, suevos e teutões, rúgios.
Não haveria nada a se surpreender caso tivesse deambulado décadas e décadas; no entanto, ele mesmo afirma que só fez duas viagens em vida, uma delas sendo a que o levou àquele mosteiro onde nada se falava, e a primeira a que o deslocou da casa paterna, em Samotrácia, até Atenas, para estudar. Tinha, portanto, formulado os trabalhos por dedução, pelos curtos períodos em que peregrinou ou pelo que ouvira enquanto ainda estava na Grécia. “Exigiram de mim mais intensidade e abrangência de pensamento que diálogos inúteis e trilhas desnecessárias, porque não há vários senão um único fenômeno que podemos definir como o todo [ολόκληρος, também traduzível como sociedade]”, explica na missiva. Se Lucrécio provou que muito da natureza é possível acessar apenas pela força da lógica, Hipatos, sob a influência de Plotino, teria tentado mostrar que também as particularidades sociais estão subordinadas a um conjunto de leis diferentes apenas no inessencial. Mas talvez esta seja uma conclusão contemporânea, tentando atribuir a ele uma consciência sociológica avançada que de fato lhe faltava.
Teríamos mais a acrescentar se ele tivesse extraído da rotina literária contínua e tediosa algumas linhas menos negligentes sobre si mesmo. De qualquer forma, registrou que sua ascendência era em certo sentido humilde, cedo se desgarrou da família e se alfabetizou quase sozinho. Nunca teve filhos; nem parece ter precisado ceder a impulsos sexuais, convertidos em preocupações do intelecto. Cultivava barba e cabelos longos. Nos 50 anos em que viveu isolado nunca trocou de roupa. Alimentava-se de frutas silvestres. Incorporou como suas regras de conduta às quais nunca aspirou. A morte desse polímata, o qual Peter Burke injustificadamente ignora em seu novo livro sobre personagens de multitalentos, deve ter acontecido em algum mês de 571, na travessia empreendida de retorno à cidade natal. É mais provável, na verdade, que essa promessa nunca tenha se concretizado e que seu enterro não haja atraído mais do que o necessário trabalho funerário dos ermitões seus vizinhos, como ele mesmo fez antes para outros companheiros. Se assim foi, morreu com a saudade de rever o lugar onde nasceu.