Bemdito

Você não vive sem mim

Série documental da Netflix, "Como Se Tornar um Tirano" revela que ditadura e relacionamento abusivo são instituições muito mais próximas do que pensamos
POR Simone Mayara
Foto: Divulgação

O título pode remeter a relações amorosas abusivas, mas sigo tratando só de política mesmo. Na realidade, da relação abusiva entre tiranos e seus adoradores, que, em alguns casos, é amorosa mesmo. Da mesma forma que o namorado que controla a roupa, ou a namorada que manipula fazendo o outro acreditar que viver sem ela seria uma dor impossível ou simplesmente inviável, parece ser uma constante.

Sigo reservando as opiniões amorosas aos encontros com vinho, amigos e privacidade, mas consigo ver claramente o quanto as coisas se aproximam e as relações humanas abusivas são comuns. Toda essa divagação surgiu de finalmente ter sentado para assistir a série documental: Como Se Tornar um Tirano. Depois da indicação de vários amigos, entendi o frisson. Aviso: vale a pena, se você gosta de política ou não.

A série, de produção própria da Netflix, tem seis episódios que seguem uma narrativa irônica: um manual da tirania. Ao longo dos episódios, são ditadas lições para alcançar o status dos grandes – aqui, sem qualquer juízo ético – como Stalin e Idi Amin.

Para os fãs de streaming, algumas marcas claras da produção estão presentes: a fotografia, o modo de narração e o estilo jornalístico nas entrevistas de especialistas. Cada episódio traz uma figura central, mas ainda assim outros exemplos vão sendo dados sobre como seguir as regras do manual. O uso de jornais e filmagens da época traz segurança na informação e aumenta a sensação de desconforto com os absurdos.

Particularmente, meus episódios favoritos são o 4 e 5, que tratam da importância da propaganda para o controle social e de como os sonhos malucos de construir uma nova sociedade fizeram de Khadafi um tirano sanguinolento.

Aliás, algo em comum em todos os episódios são os exemplos horrorosos de uso da violência para calar adversários ou apenas demonstrar poder e manter longe qualquer chance de insurgência. Não haviam me avisado disso, é preciso estômago. Ainda que não haja cena explícita, as reconstruções de algumas barbaridades, mesmo em desenho, são fortes.

Algumas coisas chamaram a atenção. No episódio específico sobre Hitler, um professor fala sobre a escalada de violência entre a população alemã contra os judeus e reforça, para os que olham o passado e juram que não fariam igual: fariam, sim. Assim como em livros e documentários que tratam do período, o episódio ratifica o quanto a turba é suscetível a praticar horrores quando escondida no coletivo.

Outra coisa que chamou muito a atenção, talvez pelo período em que vivemos, é quando, no episódio de Stalin, são mostradas as formas como ele controlou inclusive a Ciência. Lysenko, o cientista que aplicou a filosofia marxista aos grãos (sim, esquisito) e, dessa forma, prometia acabar com a fome na URSS, foi erigido a altos cargos, ainda que as suas técnicas tenham se mostrado inúteis.

Então, ainda que cientificamente algo fosse dito e provado, o que era levado em conta teria que se adequar à narrativa. E aí a ciência vira um dogma, já que perde o direito de ser questionada. Não por palpiteiros, mas por outros cientistas e por novos experimentos. Outro ponto interessantíssimo do episódio é a criação do, depois comprovado, mito de Pavlik. O menino teria entregue aos camaradas o pai que estocava cereais para vender depois com lucro. A história traz dois fatores fundamentais à mentalidade leninista stalinista: lucro é mau e família não é importante. Não à toa foi replicada das mais diversas formas. Ninguém é tão importante quanto Stalin.

Reforço a mais sincera recomendação: assista! Não é uma programação leve e tranquila, mas bem feita e fundamentada. Joga na nossa frente sem dó os absurdos que retóricas repetidas sem fim e a vontade de ser protegido podem fazer com nações inteiras. Está tudo lá no manual. Aparelhar instituições, prometer alimentar, criar rios no deserto, e tudo sempre com a mesma falácia: vocês não teriam uma vida tão boa se não fosse o tirano da vez. “Vocês não vivem sem mim”.

Simone Mayara

Analista política, é especialista em Direito Internacional e Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política. Atualmente é sócia na consultoria de diplomacia corporativa Think Brasil.