Bemdito

Não mexa na minha bandeira

Símbolo cada vez mais ligado ao ultraconservadorismo nos EUA, Bandeira de Gadsden tem origem independentista
POR Simone Mayara
Foto: Reprodução

“BANDEIRA” , substantivo feminino que se refere a “peça, ger. de pano retangular, com as cores e emblema de uma nação, estado, instituição religiosa, agremiação política, recreativa ou desportiva etc.” . Em uma rápida busca na Internet, é possível descobrir que “BANDEIRA” é uma palavra com mil significados. Um mal-entendido, ou bem entendido mal intencionado recente, com uma bandeira em Fortaleza, misturou a “peça” a um dos seus significados figurados de maneira errônea: “FIGURADO (SENTIDO) • FIGURADAMENTE: ideia ou objetivo que orienta um partido, grupo, doutrina etc.”

Na publicação que gerou o mal-entendido, a página do Instagram mostra uma fotografia da Bandeira de Gadsden, em uma janela do bairro nobre – como ressaltado -, e associa a bandeira ao movimento supremacista branco. A associação é feita sobretudo em função das pessoas que levavam essa bandeira quando invadiram o Capitólio em Washington, em 6 de janeiro deste ano.

Eram grupos que questionavam a eleição de Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos. A participação e o incentivo de alguns grupos como o QAnon – conhecido pelo apoio ao ex-presidente Donald Trump e movido por teorias da conspiração – fizeram com que, à época do evento, algumas matérias já tratassem de uma possível mudança do uso do símbolo.

Não é novidade esse tipo de mudança. O problema, neste caso, é que a associação feita parece mais obra do desconhecimento ou de má vontade para a manutenção de um discurso fácil: supremacistas brancos xenófobos do bairro nobre. Depois de receber críticas, foi adicionada à legenda da foto a história da criação do símbolo, que nada tem a ver com a supremacia de um povo sobre outro. Na verdade, foi criada exatamente para a independência dos Estados Unidos.

A bandeira de Gadsden é formada pela imagem de uma cobra sob um fundo amarelo vivo com os dizeres don´t tread on me (não pise em mim). Foi desenhada por Christofer Gadsden, o principal líder do movimento patriota da Carolina do Sul, durante a Revolução Americana.

Foi prisioneiro de guerra e, quando houve a possibilidade de liberar sua cidade do controle britânico, caso desse sua palavra de honra de que não lutaria novamente, Gadsden se recusou, alegando que não poderia jurar defender um sistema em que ele não acreditava. A bandeira foi desenhada para unir o pensamento contrário ao autoritarismo da Coroa e esse tipo de atitude era comum. Uma forma de comunicação clara. O hábito de usar bandeiras que iam à frente durante as guerras para marcar e unir é antigo e muito popularizado na Idade Média. A bandeira e o tambor eram as formas de unir e motivar. A bandeira física remetendo à subjetiva.

Esse foi o uso inicial da bandeira de Gadsden. Nos dias atuais, virou o símbolo do movimento libertário. Ideologia política – ou filosofia de vida, como alguns gostam de tratar -, o libertarianismo crê que as relações humanas e a confiança são suficientes e que toda limitação estatal é uma forma de ferir a liberdade humana. Vida, liberdade e propriedade são os princípios maiores dessa vertente, o que a difere do anarquismo.

O tema do mau uso das palavras com a justificativa de construção social já foi abordado anteriormente, com a banalização do horroroso “genocida”. Outra justificativa para a prática é a simplificação do processo dinâmico de alteração da linguagem pelo próprio uso, o que acaba por efetivamente desvirtuar e afastar do seu caráter semântico para a instrumentalização de uma causa, e não pela mutação própria da linguagem.

A ideia de que as palavras são completas em si e por isso podem ser desconstruídas e liquefeitas, e não que representam algo e são instrumentos e fins em si, é a base desse pensamento. O problema é que a linguagem e a comunicação, quando assim tão alteradas, reforçam a separação – vide o episódio de Babel. E o preço das alterações irresponsáveis pode ser uma boa “lacrada”, como no exemplo que deu início a essa coluna, mas também a sectarização de grupos e, pior, o afastamento da realidade.

Ainda que grupos com teorias mirabolantes usem, entre outras coisas, a bandeira de Gadsden, o símbolo nasceu do movimento contrário à tirania e aos governos grandes, e da exaltação à liberdade individual. Ou seja, em defesa da menor minoria da terra: o indivíduo.

Ainda que bandeiras da foice e do martelo sejam associadas a palavras como “liberdade” e “democracia”, seu uso primeiro foi em regimes que extinguiram quem pensava de forma diferente e limaram as liberdades individuais pela igualdade na pobreza de vários e a centralização das decisões em poucos, que acabavam virando uma casta de privilegiados. Sobre isso, não há insistência ou má interpretação que possam agir.

Simone Mayara

Analista política, é especialista em Direito Internacional e Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política. Atualmente é sócia na consultoria de diplomacia corporativa Think Brasil.